Capitulo V
Hermione fechou a porta e trancou-a. Depois foi para o recanto destinado à sala e recostou-se no sofá.
Segurava as lágrimas que lhe queimavam os olhos, recusando deixá-las cair. Não iria se entregar. Já tivera bastante prática em controlar suas emoções, e esse controle criara nela uma quase segunda natureza durante os últimos dois anos.
Em resumo, desde o dia em que se apaixonara por Harry.
Sempre soubera que seria bobagem deixar que isso acontecesse. Harry não era o tipo de homem por quem sonhara se apaixonar um dia. Sonhara escolher alguém como seu pai, um homem sossegado, atraente, nada ambicioso, cuja vida girava em torno da esposa e da pequena filha.
Harry não tinha traços perfeitos. Não mesmo. O rosto era anguloso, o nariz um pouco deformado devido ao boxe na Marinha. A boca grande demais, os lábios muito finos, e os olhos com uma expressão cética que o fazia parecer bem mais velho de sua idade.
E era ambicioso. Terrivelmente ambicioso. Rápido nos planejamentos, terminava tudo antes que os outros departamentos soubessem o que estava acontecendo. Era perfeito para a posição que ocupava na firma de Kane Haley, mas não o tipo de homem para se sonhar com ele. Hermione estivera consciente disso desde o momento em que o conhecera.
Mas aí Harry apareceu-lhe à porta com uma árvore em seu primeiro Natal na cidade. Seu primeiro Natal sozinha. Ela olhara para aqueles olhos verdes, reparara nos traços do rosto enquanto ele punha a árvore dentro de casa, e se apaixonara pela primeira vez na vida.
E uma vez tendo começado a descer a ladeira do amor, fora impossível parar. Harry passara o dia em sua casa enfeitando a árvore com os objetos decorativos que ela herdara da mãe. Abraçou-a com carinho e Hermione derramou algumas lágrimas com saudade dos Natais passados.
Mas Harry deixou-a chorar. E depois a fez rir. Quando descobriu que Hermione não tinha um enfeite para o topo da árvore, criou um usando um copo de papel vermelho. E assim o dia terminara com o aroma do pinheiro, com as luzes piscando, o som de risadas, e o suave silêncio da neve caindo lá fora. Também com o calor da lareira e o gosto do chocolate quente. Eram as lembranças do Natal... e de Harry.
No instante em que ele se fora, Hermione dissera a si mesma que tinha a impressão de que levara seu coração consigo. Havia sido uma combinação de feriados e emoções. Dali por diante ela trabalhara procurando enterrar bem fundo seus sentimentos, e durante meses tentara fingir que Harry era apenas seu chefe. Um grande homem para se trabalhar junto. Um amigo.
Porém ultimamente estava lhe parecendo cada vez mais difícil esconder seus sentimentos. Estremecia de emoção cada vez que ele sorria inesperadamente ou cada vez que havia um inesperado toque de mão. Ela evitava o tempo todo revelar alguma coisa, até chegara a imaginar que Harry adivinhara seu segredo. Mas graça a Deus, isso não acontecera. Sabia que Harry não estava interessado na vida amorosa dela. Harry talvez pensasse que ela não sentia atração por homem nenhum.
Engoliu em seco, encolhendo-se no sofá. Depois retesou o corpo ao ouvir uma pancada na porta. Apavorou-se. Oh, por Deus, não teria ele ido embora? Não conseguiria encarar Harry de novo naquela noite.
Mas um segundo mais tarde uma voz feminina chamou-a.
-- Hermione? Você está bem? -- Com alívio reconheceu que não era Harry que voltava para atormentá-la. Era Gin.
Em geral Hermione gostava de conversar com sua vizinha. Conhecera-a no abrigo de mulheres, onde Gin, uma cosmetologista, fora fazer uma demonstração do uso de cosméticos para ajudar algumas mulheres a se preparar para as entrevistas de empregos. Ela e Gin ficaram muito amigas, tanto que, quando o apartamento ao lado vagou, há um mês, Hermione comunicou a Gin que imediatamente tratou de alugá-lo.
Embora a companhia de Gin fosse sempre muito divertida, Hermione não estava com vontade de se divertir naquela noite. Contudo, ao reconhecer preocupação na voz da amiga, não pôde ignorar o chamado. Com um suspiro, abriu a porta.
Gin fitou-a, e entrou. Seus cabelos negros caíam pelas costas como uma capa. Carregava uma pasta nos ombros e seguiu Hermione até o sofá.
Hermione sentou-se, convidando Gin a fazer o mesmo.
-- Está bem, o que está acontecendo aqui? Quem era aquele homem e por que ele a fez chorar? -- Gin perguntou, enquanto se sentava.
-- Não estou chorando. -- Hermione sentia um nó na garganta. -- O homem era apenas meu chefe. Harry.
-- Ele despediu você do emprego? -- Gin tirou da pasta um pacote de lanços de papel.
-- Não, claro que não...
-- Magoou você, então? -- Gin interrompeu-a. Sem esperar resposta, acrescentou, zangada: -- Eu sabia que isso iria acontecer um dia.
-- Bem, mas não aconteceu. -- Um sorriso amargo escapou-lhe dos lábios. -- Na realidade, você não poderia estar mais errada. Ele fez o oposto do que você está pensando.
-- Recusou ir à cama com você? -- Gin fitou-a, estupefata.
-- Sim... bem, não. Quer dizer, esse assunto não surgiu.
-- Então, por que veio ele aqui?
-- Porque pensou que eu estivesse grávida.
-- Grávida do filho dele?
-- Não. Claro que não!
-- Grávida de outro homem, então?
-- Oh, por Deus, Gin, não estou grávida -- Hermione disse, irritada. -- Ele acha que sou ingênua demais, que não sei nada sobre os homens, e que alguma coisa desagradável pode me acontecer de repente. Enfim, ele acha que se um homem um dia sair comigo, será por estar desesperado por sexo. Muito desesperado.
Gin não teve dificuldade nenhuma em entender a explicação um tanto confusa.
-- O canalha! -- ela exclamou.
-- Oh, ele não teve intenção de me ferir -- Hermione protestou logo. -- Harry não é assim. Na verdade, tenho quase certeza de que ele tem muito afeto por mim. Me provoca, mas como provocaria uma irmãzinha. Eu que me iludi pensando que ele viria com o tempo me considerar mais do que uma irmã.
-- E porque isso não haveria de acontecer? Você é uma mulher linda.
Hermione sorriu para a amiga mas sacudiu a cabeça, comentando:
-- Eu jamais poderia competir com as mulheres com quem ele sai. São maravilhosas, como também sofisticadas. São como modelos vitorianos, claro.
-- Têm seios grandes, é isso? Mas, o que você quis dizer com as mulheres de Harry? Por que no plural? Que tipo de homem é esse? Um tipo de bon vivant?
-- Não, não exatamente. Ao menos, sei que é honesto com as mulheres que namora. Ele vai logo dizendo que não acredita no amor.
-- Contudo aposto que cada uma delas pensa que será a que o fará mudar de idéia -- Gin disse.
-- Provavelmente. -- Hermione concordou. Como poderia ela duvidar? Em segredo, não tivera essa esperança? E Harry nem ao menos a convidara para sair.
-- Ele sem dúvida é um bon vivant -- Gin afirmou. -- Esqueça esse homem, ele não merece uma mulher como você.
Uma onda de tristeza apoderou-se de Hermione.
-- Não -- ela confirmou -- Ele merece uma mulher sofisticada e linda. É o tipo de mulher que ele sempre tem como companhia.
-- Hermione Granger, pare com isso já! -- Gin repreendeu-a. -- Você é linda...
-- Oh, não acredito...
-- Sim, é. Mas até encontrar uma pessoa que acredite mesmo nisso, ninguém a achara linda.
-- Você quer dizer, Harry?
-- Céus, não! Não me refiro a Harry. Não acabei de lhe dizer que se esqueça dele? Essa pessoa é você!
-- Eu? Mas não sou linda. -- Hermione não queria irritar Gin, porém precisavam encarar a realidade.
Mas Gin não concordou.
-- O que a fez dizer isso?
-- Sou tão pouco notada! -- Hermione sussurrou.
Gin examinou-a da cabeça aos pés.
-- Então pare de usar esses vestidos que a deixam parecida com uma poça de lama. Escolha roupas coloridas, que irão bem com seu tom de pele. E mais justas, que mostrem as curvas de seu corpo. A maioria das mulheres daria qualquer coisa para ser magra como você.
-- Mas não com as minhas formas.
-- Oh, por favor, só porque seus seios não são grandes...
-- Essa é uma maneira atenuada de encarar os fatos.
-- ...não significa que tem um corpo feio. Suas pernas são longas e bem feitas, sua cintura fina, nada de barriga. É uma mulher abençoada. -- Gin encarou-a com insistência. -- Não enxerga tudo isso? O modo como se sente sobre si mesma afeta seu modo de pensar e de vestir, e influencia as outras pessoas, fazendo-as reagir da mesma maneira em relação a você. Não deve desejar ser diferente, nem desejar ser o tipo de mulher que acha que alguns homens gostam. Deve ser o tipo de mulher que deseja ser.
Hermione sabia tudo isso, naturalmente. Gin já lhe falara a mesma coisa uma dúzia de vezes no abrigo das mulheres. Porém ela nunca se esforçara para agir desse modo.
-- Sou o tipo de mulher que desejo ser -- Hermione insistiu.
-- É? -- Gin lhe perguntou, incrédula. -- Não acredito que pense muito em si. Gosta da cor cinza? -- Gin apontou para a roupa que ela usava.
-- Não, não particularmente...
-- E gosta de usar esses cabelos soltos, sem um corte especial?
-- Não, não especialmente. Mas são mais fáceis de pentear...
-- Esqueça do que é mais fácil. Gosta do aspecto que têm?
-- Não -- Hermione respondeu, e se deu conta de que estava cansada do estilo de seus cabelos havia muito tempo. -- Acho que meus cabelos ficariam mais bonitos curtos. Porém estou sempre tão ocupada. No trabalho, ajudando no abrigo e...
-- E sentada em casa, sonhando com Harry -- Gin falou com firmeza, mas a expressão do olhar era terna quando disse: -- Pare com isso, Hermione. Se continuar assim, acabará sendo uma das mulheres de Harry. Quer isso?
Não, ela não queria. Por mais que estivesse sofrendo agora, sabia que pertencer a Harry durante algum tempo, e depois perdê-lo, seria mil vezes pior.
-- Como posso lutar para evitar isso, Gin?
-- Pare de ter a mente focalizada nele o tempo todo, e procure o tipo de homem que você deseja.
-- Que dão prazer à vista? -- Hermione declarou automaticamente. -- Atletas. Bom em esportes. Harry é excelente nesse terreno.
-- Bem, você pode aprender a ser boa nisso também, para acompanhá-lo -- Gin disse com determinação.
Hermione não tinha muita certeza disso. Tinha consciência de que poderia correr atrás de um homem sabendo que ele não a desejava. Não poderia passar a vida esperando que Harry se apaixonasse por ela algum dia. Ele nunca se apaixonara por qualquer uma das extraordinárias mulheres com quem saía, então, por que imaginar que se apaixonaria por ela?
Em especial sabendo agora o que Harry pensava dela. Que não era bonita, tampouco inteligente bastante para interessar um homem como kane Haley, ou um homem como Harry Potter. Pensava que ela era o tipo de mulher desesperadamente interessada em chamar a atenção masculina, o tipo de mulher que considerava aceitável, apenas para uma noite de amor.
Hermione retesou o corpo com o orgulho ferido. Gin tinha razão. Ela precisava mudar seu modo de pensar. Mudar completamente em tudo. Procurar o que desejava. Encontrar um homem que desejasse da vida as mesmas coisas que ela desejava. Um lar. Uma família. E, acima de tudo, amor.
-- Você tem razão, Gin, sobre Harry e sobre tudo. E não há melhor coisa para começar do que com o meu guarda-roupa.
Gin bateu palmas.
-- Moça inteligente! Vamos nós duas fazer compras neste fim de semana. Vai ser maravilhoso, você verá!
Entusiasmada com a decisão de Hermione, Gin levantou-se e descobriu que estava sentada em alguma coisa.
-- Oh, por deus... o que é isto? -- ela perguntou, pegando no suéter que Hermione tricotava. Ergueu-o e fitou Hermione silenciosamente.
Mas Hermione não encarou a amiga, tinha os olhos no que estava nas mãos de Gin. Pensou mais uma vez em como aquela cor ficaria bem em Harry. E em como o aqueceria durante o frio inverno de Chicago.
Ela tirou o suéter das mãos de Gin. Pensou nas horas, nas semanas, nos meses em que trabalhara naquilo.
-- Vai ainda dar este presente a ele -- Gin perguntou.
-- Não! Não vou.
Hermione então puxou as agulhas das malhas e começou a enrolar o fio bem depressa, transformando o suéter de volta em um novelo de lã.
Encarou a amiga e forçou um sorriso.
-- E, enquanto me ocupo disto, por que não me dá mais alguns daqueles lenços de papel?
-- Pois não!
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Harry chegou ao trabalho ridiculamente cedo na manhã de segunda-feira. Não dormira bem à noite... Em todo o fim de semana, para falar a verdade.
Quando menino, sempre tivera grande dificuldade em dormir. Ficava acordado durante horas na cama, ouvindo os sons produzidos pelas pessoas que dormiam no quarto ao lado, seus pais adotivos. De qualquer maneira, não conseguia relaxar com alguém tão perto.
Ao ficar mais velho, mais alerta, não era o mesmo problema que o atormentava à noite, mas uma inquietação. Ele saía da cama e ia vagar pela escuridão das ruas, ou tentava gastar sua intensa energia física em um jogo de basquete. Ou se divertia com alguma moça que também tinha energia para queimar.
No presente usava a escuridão, as horas sem sono, para trabalhar nos projetos da firma. Considerava aquilo um remédio em benefício de sua carreira. Nunca fora pessoa de precisar de muitas horas de sono, ele sabia. Mas não conseguia se lembrar da última vez em que a sensação de culpa o mantivera acordado por tanto tempo.
Um remorso, nada familiar e pouco confortável, apareceu. Ele pôs de lado o relatório que escrevia e sentou-se em uma poltrona. Durante todo o fim de semana pensara em Hermione, se perguntando se devia telefonar e pedir-lhe desculpas mais uma vez por havê-la insultado. Mas finalmente chegou à conclusão de que deveria deixá-la algum tempo sozinha para se recuperar da dor que lhe infligira. Pediria desculpas quando ela voltasse ao trabalho. Em território neutro, enfim.
Inquieto ele consultou o relógio. Hermione deveria chegar logo. Esperava que não estivesse zangada. Ele não tivera intenção de feri-la. Conforme dissera a Kane, Hermione era uma moça carinhosa, mas sensível de mais. Depois que o perdoasse lhe diria, muito sutilmente, que ela precisava mudar de atitude.
Apanhou o relatório para voltar ao trabalho. Derrubou a caneta no chão. Abaixou-se para pegá-la. Enquanto estava embaixo da mesa esticou o braço e... parou.
Com a cabeça na fresta da escrivaninha pôde ver um par de pernas se aproximando. Longas, pernas femininas bem-feitas que terminavam em tornozelos finos e pés pequenos calçados em sapatos de salto bem altos.
Curioso para ver o resto do pacote, levantou-se de um salto e bateu com a cabeça na quina do móvel.
Viu estrelas. Fechou os olhos.
-- Diabos! murmurou, esfregando o lugar machucado.
-- Tudo bem? -- uma voz suave lhe perguntou.
-- Tudo. Hermione?
-- Sim, sou eu.
Harry arregalou os olhos e ficou de queixo caído. Fechou a boca, mas continuou encarando a mulher ali diante dele.
-- Hermione -- repetiu, pois mal podia acreditar. -- O que fez consigo mesma?
-- Algumas mudanças.
Sem dúvida fizera. Harry fitou-a, catalogando as mudanças, enquanto ela se encaminhava para a própria cadeira. Ela usava um suéter rosa que evidenciava os contornos do seu corpo, revelando as curvas dos seios. A saia de lã preta que chegava até um pouco acima dos joelhos isso sem mencionar os sapatos de salto exagerados que a tornavam bem mais alta.
Mas as mudanças não paravam ali.
-- Não está usando seus óculos -- Harry disse, como se ela não o soubesse.
-- Uso lentes de contato. Tenho-as por algum tempo já, mas nunca as usei no trabalho porque me fazem lacrimejar. Mas Gin acha que tenho melhor aparência sem meus óculos, por isso estou tentando me acostumar sem eles.
Gin de novo! E por ironia do destino, Gin estava certo, Harry pensou. Sem os horríveis óculos dominando o pequeno rosto, seus olhos pareciam maiores e mais brilhantes. Mas aqueles olhos de tom castanhos mel estavam diferentes na cor também, mais escuros, rodeados por cílios surpreendentemente longos e pretos.
-- Suponho que Gin tenha aconselhado o corte de cabelos -- ele comentou secamente.
Em vez de caírem lisos pelas costas, agora estavam ondulados, brilhantes e bastos, com reflexos dourados entre os fios de castanhos.
O corte definitivamente a favorecia, concluiu Harry, relutante em dar razão a Gin. E a boca... O novo batom vinho, fazia os lábios mais cheios, úmidos e convidativos ao beijo.
Com esforço, Harry desviou o olhar. Sim, ela mudara, sem dúvida. A única qualidade familiar que restara era a expressão resoluta.
-- Harry...
-- Sim?
Hermione parecia, além de tudo, mais sofisticada. Mais suave. Mais sexy. O tipo de mulher que ele gostaria de ver em sua cama. Ei, homem essa é apenas Hermione, não uma boneca sensual.
-- Eu gostaria de entrar com um pedido de transferência -- ela declarou à queima-roupa.
Harry deu um passo atrás, voltando à realidade pela nota de determinação na voz de Hermione.
-- Você falou em transferência?
-- Falei. Quero estender um pouco minhas asas. Quero ganhar experiência em alguns outros departamentos.
E se afastar de mim, Harry terminou a frase em silêncio sentindo uma inesperada pancada de dor, ao pensar no caso.
Céus, Hermione não poderia estar falando sério. Estava apenas sentida com o que ele dissera.
-- Hermione, isso é por causa da outra noite...
-- Não é -- ela insistiu, interrompendo o pedido de desculpas, que por certo viria da parte dele. -- Minha transferência não tem nada a ver com aquilo.
Harry não acreditou. Sabia que agira mal. Ele refletiu sobre o pedido que lhe fora feito, tentado decidir sobre a melhor maneira de conduzir a situação. Hermione estava sem dúvida pronta para uma batalha. A cor rosa de seu suéter refletia no rosto, e nem mesmo o suave material disfarçava o orgulhoso erguer dos ombros.
Ele olhou-lhe as mãos. Os dedos finos seguravam o bloco com tanta força que as articulações ficaram brancas.
Então, ela esperava uma luta, certo? Pois bem, nesse caso lhe daria uma.
-- Certo -- Harry concordou --, pode ter sua transferência... -- Uma enorme surpresa surgiu nos olhos castanhos. Porém, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele acrescentou: -- Mas não antes de terminarmos com a incorporação Bartlett. Não quero contratar outra secretária no meio de contrato tão importante como esse.
Hermione mordeu o lábio, pensando no caso enquanto Harry a observava, vendo como os dentes dela eram brancos contrastando com o vermelho do batom.
-- Quanto tempo você acha que levará até o término da incorporação? -- ela finalmente perguntou,
-- Espero terminar por ocasião de nossa viagem a Hillsboro.
-- Tudo bem -- Hermione respondeu, após certa hesitação. Porém eu ficaria muito grata se você começasse a encaminhar meu pedido imediatamente.
E Harry esperava que ela parasse de ser tão sensível! O que fizera fora rude, imperdoável. Mas estava na hora de esquecer e voltar ao normal.
-- E eu acho que...
Harry parou de falar quando alguém bateu à porta. Brandon Levy, um jovem que trabalhava na seção de correspondência todas as manhãs, enquanto terminava seus estudos na universidade à noite, entrou sem esperar ser convidado.
Brandon sempre andava depressa, como uma girafa. Chegou ao meio da sala em menos de dois segundos, com alguns envelopes nas mãos.
-- Desculpe-me interrompê-los, mas nessas cartas estava escrito "urgente", e pensei que seria melhor trazê-las logo.
-- Dê as cartas a mim -- pediu Hermione, estendendo o braço.
Brandon foi ao encontro dela.
-- Trouxe algumas para Maggie também, e terei de entregá-las... -- Ele ergueu a cabeça e arregalou os olhos ao ver Hermione.
Ficou ali parado, olhando para ela com espanto, a mão estendida com os envelopes.
Hermione sorriu e apanhou as cartas.
-- Aqui estão elas -- o rapaz sussurrou, como se não acreditasse no que via.
-- Obrigada, Brandon -- Hermione respondeu sorrindo.
-- De nada, Hermione -- o jovem murmurou.
Então, quando Hermione foi pegar a espátula na mesa de Harry, para abrir as cartas, Brandon se adiantou e deu-a a ela. Ganhando assim outro sorriso de agradecimento.
-- Obrigada mais uma vez -- Hermione disse.
-- De nada -- Brandon respondeu com um sorriso aberto.
Harry resistiu ao desejo de jogar o jovem para fora de seu escritório, pois imaginou que Hermione não gostaria disso, ele sabia. Passados uns dez segundos, como Brandon ainda permanecesse lá, Harry lembrou-o:
-- Você falou que tinha umas cartas para Maggie também, não falou? Por que não vai levá-las?
-- Oh, sim, eu falei. -- Brandon pareceu ter se arrependido terrivelmente de ter falado.
Harry observou-o saindo da sala bem devagar, sem tirar os olhos de Hermione enquanto possível. Brandon tropeçou no cesto de basquete improvisado, recuperou o equilíbrio, e finalmente saiu.
Harry olhou para Hermione e perguntou:
-- Você pode acreditar nisso?
-- Acreditar em quê? -- ela perguntou, sem parar de abrir as cartas.
-- Brandon -- Harry falou com impaciência. -- Notou como ele agiu? Não tirava os olhos de você.
-- Não reparei. Ele apenas me entregou as cartas e a espátula.
-- E praticamente a engoliu enquanto fazia isso.
-- Oh, por favor. -- Hermione voltou à atenção aos envelopes.
Em se tratando de qualquer outra mulher, Harry pensaria que ela estava fingindo não ter notado o interesse de Brandon. Mas Hermione simplesmente não vira nada, Harry tinha certeza disso. Porém, assim mesmo ele não resistiu e perguntou:
-- Desde quando esse garoto a chama de Hermione?
-- Desde que veio trabalhar aqui. Por quê?
-- Parece-me um tratamento íntimo demais, desrespeitoso, não acha?
-- Você deve estar brincando -- ela respondeu secamente. -- Esse garoto é apenas quatro anos mais moça do que eu. Há duas vezes essa diferença em idade entre mim e você. Será isso uma sutil sugestão para que eu o trate de Sr. Potter? Tenho sido íntima demais?
-- Céus, não! -- Harry falou depressa. Essa era a última coisa que ele esperava naquela manhã. As situações eram bem diferentes, e Hermione devia saber muito bem disso. Bradon era quase um menino, e ela uma mulher. E ele, por outro lado, era um homem e Hermione... bem, ainda era uma mulher.
Hermione observava-o, esperando um debate. Mas Harry preferiu deixar o assunto cair. Não queria se meter em outra discussão ridícula e em uma que ele suspeitava não vencer. O que desejava mesmo era corrigir o que dissera antes.
-- Hermione, sobre a outra noite... -- Ele esboçou um sorriso. -- Sinto muito. Não pretendia dizer o que disse.
-- Tudo bem. Esqueça. Na realidade, me fez um favor.
-- Fiz?
-- Fez. Pensei muito no que me disse e decidi que você estava certo.
Essa poderia ter sido uma boa resposta, mas Harry de repente sentiu-se horrível, como se estivesse na Marinha de novo, atravessando um campo minado.
-- Certo sobre o quê? -- ele perguntou, com cuidado.
-- Sobre o que você está sempre me dizendo. Que preciso desenvolver minha força de caráter, minha firmeza. Determinar minhas metas, obter mais. que devo aprender a lutar pelo que desejo.
Harry relaxou de novo, recostando-se melhor na cadeira. Fez um sinal de aprovação com a cabeça, contente por Hermione estar enfim aceitando seus conselhos.
-- Bom. Folgo muito por ouvir isso -- disse. -- Então, o que deseja, afinal?
-- Um homem.
-- O quê?! -- Harry endireitou o corpo abruptamente. Sua cadeira quase tombou. -- O que você disse?
-- Eu disse um homem, Harry. Sabe o que são homens? Essas criaturas sobre as quais você sabe tanto. -- Hermione pegou seus papeis, preparando-se para sair.
-- Suponho que essa seja outra sugestão feita por seu amigo Gin. E suponho que ele pretenda ser o homem em questão.
Hermione fitou-o, estarrecida. Amigo Gin? Não amiga? Ela começou então a entender tudo, mas continuou a alimentar o engano dos sexos, e disse:
-- Não, acho que não. Gin e eu somos apenas amigos.
-- Pensei que você tivesse se sentindo ofendida na outra noite quando eu, inadvertidamente, admiti que podia ter tido uma aventura de uma noite.
-- Fiquei ofendida, sim, e continuo ofendida pela insinuação, inadvertida ou não. Nem todo o mundo é como você, Harry, capaz apenas de breves affairs. Procuro um relacionamento sério, um que me leve ao casamento.
-- Casamento?!
-- Sim. Ca-sa-men-to -- Hermione destacou cada sílaba como se estivesse ensinando uma palavra estrangeira. E tomou a direção da porta.
-- Vamos, Hermione. Isso é ridículo -- ele disse, demonstrando irritação na voz. -- Você não pode decidir se casar assim, sair procurando um marido. Não é como acontece.
Até aquele momento Hermione consentira em levar avante o falso caso de Gin mais para afastar sua mente de Harry, achando que iria funcionar. Mas sabia que continuava sendo a mesma pessoa apesar de seu novo traje e maquiagem diferente.
Contudo ouvi-lo rejeitar sua meta com sarcasmo, fez sua determinação aumentar como nada mais poderia ter feito.
-- Quer apostar? -- ela perguntou e saiu, fechando a porta em seguida.
Harry rangeu os dentes, segurando-se para não ir atrás. Hermione estava ficando boa nesse jogo, Harry pensou com raiva.
Não podia acreditar que ela recebera um conselho prático, quase de negócios, e torcer o sentido para a absurda meta de um casamento. Casamento não era uma coisa que a pessoa procurava, mas uma coisa que acontecia quando menos se esperava, como um acidente de carro.
Hermione não poderia desejar aquilo. Nenhuma pessoa sã poderia. Ela achava mesmo que queria se prender a uma pessoa? Voltar à casa todas as noites para conversar, para dormir, fazer amor, com alguém como aquele Gin Leonardo? Céus, não. O simples pensamento de Hermione com alguém como Leonardo, que nome!, fazia Harry ter vontade de vomitar.
Na verdade, Hermione não precisava ter saído da sala assim, ele concluiu. Tinha apenas vinte e quatro anos, por Deus. Jovem demais para ir correndo solta pelas ruas. Lembranças da vida dele aos vinte e quatro anos surgiram em sua mente, mas afastou-as. Contudo... estava ainda na Marinha e era um homem. Hermione era... bem, era Hermione.
Jovem demais, inocente demais, para saber o que dizia. Não precisava de um homem. Tinha seu chefe. Ele.
E tencionava continuar sendo chefe dela. Harry pegou o pedido de transferência que Hermione deixara sobre a mesa. Eles dois combinavam bem trabalhando juntos. Ela não podia querer uma transferência. Pensava que queria por estar aborrecida. As coisas iam bem como estavam. Ou ao menos, como estiveram antes de Kane Haley aparecer no escritório e começar com toda a confusão. Maldito Kane, com seu louco problema de gravidez.
Não fosse por Haley, Hermione não teria partido na louca cruzada de encontrar um homem. Uma cruzada que Harry desaprovava totalmente. Aquela era a firma de negócios, não uma agência de casamento. Ele não precisava de um bando de machos apaixonados, como Brandon, entrando em sua sala causando complicações. Hermione não precisava deles também.
Um tipo de medo feminino de repente se apossara dela. Uma pessoa não mudaria assim da noite para o dia. Hermione logo ficaria cansada de tudo aquilo e voltaria ao seu normal. Ele tinha certeza.
Mas até que voltasse, teria de vigiá-la. Garantir que não enveredasse por um caminho errado com sua nova aparência. Impedir que qualquer problema tomasse vulto.
Ele poderia fazer isso. Sem esforço. Era uma boa pessoa para resolver problemas. Amassando o pedido de transferência, jogou-o no lixo.
Sim, ele era uma excelente pessoa para resolver problemas, uma excelente pessoa para controlar situações. E não era?
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