Bela visão. Longas pernas, short curto e curvas nos lugares certos. Harry sorriu, seguro na certeza de que sua boa samaritana não podia ver o que estava fazendo.
Se tinha de passar pelo infortúnio de ficar parado no meio do nada, aquele era o melhor lugar.
— Muito bom — disse em voz alta, inclinando a cabeça para ter uma visão ainda melhor.
— O que disse? — Ela se levantou e virou ao mesmo tempo, quase batendo a cabeça na tampa do motor.
Harry franziu a testa.
— Tome cuidado, está bem? A última coisa de que preciso é uma mulher com a cabeça sangrando, caída perto do meu carro.
Gina o envolveu em um olhar gelado.
— Não se preocupe. Eu não me atreveria a ensangüentar seu precioso Porsche.
— Não foi isso que eu quis dizer — protestou. Na verdade, havia pensado nela gravemente ferida, ele com uma perna machucada, o carro quebrado, sem telefone e sem meios de pedir ajuda. Mas podia perceber pela expressão de seu rosto que era tarde demais para oferecer explicações.
— Homens — Gina resmungou, ajeitando os cabelos curtos e ruivos antes de inclinar-se mais uma vez sobre o motor.
Harry praguejou em voz baixa. Mulheres.
O dia ficava cada vez pior. Não queria ir a um estúpido casamento da alta sociedade, nunca gostara muito da afetada noiva de Dino ou de sua família e não apreciava a idéia de passar o final de semana preso com uma gravata no pescoço. Se não houvesse sofrido aquele ferimento idiota, uma torcedura no joelho acarretada por um acidente esdrúxulo durante a parada do dia de St. Patrick, talvez pudesse ter escapado.
Como membro do Corpo de Bombeiros de Chicago, certamente teria inventado uma desculpa qualquer alegando deveres profissionais. Mesmo que estivesse de folga, teria trocado o plantão com algum colega, ou ido resgatar um gato em uma árvore, polido o caminhão, apagado alguns incêndios, desfrutado de um excelente final de semana. Mas não.
Caíra do caminhão de bombeiros no meio da parada de St. Patrick quando tentara acenar para um garoto enquanto chupava um sorvete. Uma antiga lesão no joelho havia se agravado por conta de alguns ligamentos rompidos, o que o forçara a tirar licença médica. Tudo isso significava que não tinha uma boa desculpa para evitar o requintado casamento do irmão de criação.
Um final de semana com a alta sociedade. A idéia chegava a provocar coceiras piores do que as que sofrera quando tivera a perna imobilizada por um gesso depois da cirurgia.
Mas... bem, partira disposto a tirar o melhor proveito possível da situação. Então se perdera no caminho para Lago Genebra, o carro quebrara, e fora forçado a ficar parado numa estrada solitária por mais de meia hora.
Não tinha direito a um certo mau humor?
Felizmente as curvas de Gina Weasley e seu short curto eram uma boa distração. Se ela se debruçasse um pouco mais sobre o motor, faria arrebentar uma costura. Mal podia esperar por isso.
— Humm — ela resmungou, limpando as mãos nos bolsos traseiros da bermuda e virando-se, as costuras lamentavelmente intactas. — Receio que seja a bomba de combustível. Nada que eu possa consertar.
Harry conteve o ímpeto de dizer que a prevenira.
— Vai ter de providenciar um reboque para levar o carro até Lago Genebra. Tenho certeza de que essa é a cidade mais próxima com uma oficina decente.
O mau humor tornou-se ainda pior. Mas então ela o encarou e sugeriu:
— Por que não vem comigo?
Embora odiasse aceitar favores, Harry começou a sentir-se mais animado.
— Não quero causar problemas — disse, embora já estivesse retirando do carro a valise que levara. Pegar carona em uma estrada deserta com uma mulher dona de um sorriso encantador e um traseiro inesquecível? Aquela era uma oferta que não podia recusar.
— Vamos para o mesmo lugar — ela respondeu. — E estamos quase chegando. — Tirou a valise da mão dele. — Deixe-me ajudá-lo. Está ferido. Não devia se esforçar tanto.
Harry agarrou a mala.
— Não sou nenhum inválido.
Gina franziu o nariz, como se considerasse a hipótese de recuperar a valise à força, mas notou a expressão determinada em seu rosto e desistiu do assunto.
— Como aconteceu? — perguntou com tom interessado, segurando-o pelo braço e guiando-o até a porta do Volkswagen. — Estava esquiando? Jogando pólo?
Quem ela pensava que fosse?
— Nunca joguei pólo em toda minha vida. E só esquiei uma vez.
— Oh. —Trocaram um olhar repleto de curiosidade, como se ele contemplasse a estranheza de ser considerado um jogador de pólo, e ela tentasse reajustar uma imagem mental que descobrira ser errada. — Então, como se machucou?
— No trabalho — respondeu, esperando não ter de relatar o estúpido acidente envolvendo o caminhão de bombeiros e um sorvete.
Gina abriu o porta-malas, constatou que estava lotado de valises e pacotes e, distraída, fechou-o, voltando à porta do passageiro. Por cima do ombro, perguntou:
— Que tipo de trabalho é o seu?
— Sou bombeiro.
— Oh, céus! — Ela o encarou com admiração e surpresa. A mesma expressão que vira no rosto de sua professora do primeiro ano quando obtivera nota máxima na prova de ditado. — E machucou-se trabalhando? Uau! Isso é tão... — Tirou a valise de sua mão mais uma vez, apertando-a contra o peito para impedi-lo de retomá-la. — Tão heróico!
Não era correto deixá-la pensar que ferira o joelho combatendo um incêndio. Mas seria ainda pior relatar os detalhes embaraçosos de sua aventura na parada.
Enquanto hesitava, Gina cuidava de sua valise. Com ar determinado, ela afastou o banco do passageiro para a frente e usou de força física para encaixar sua bagagem no espaço reduzido do banco traseiro do Fusca.
Harry sorriu. Quem quer que fosse, Gina Weasley era bonitinha. Não eram só as pernas ou o sorriso, embora ambos fossem dignos de elogios. Não era nem a energia ou o espírito, apesar de também serem impressionantes. Afinal, ela se oferecera para consertar seu carro, carregar sua mala e levá-lo no pequeno automóvel. Tinha a sensação de que não se recusaria a carregá-lo no colo, se pedisse.
Talvez fosse a maneira como o olhava, como se quisesse tricotar um cobertor em sua homenagem e colocá-lo na cama com uma xícara de chocolate, o que não costumava fazer em companhia de mulheres sensuais como ela. Mas a idéia não era ruim...
— Talvez este final de semana não esteja perdido, afinal — disse em voz alta, enquanto Gina devolvia o banco à posição original e o convidava a sentar-se.
Harry olhou para o assento do Fusca com ar hesitante. Como poderia caber naquilo?
— Pule! — disse entusiasmada.
— Ultimamente não tenho dado muitos pulos.
— Oh, é claro que não. Meu Deus. Receio que um Fusca 69 não seja o veículo ideal para um homem alto como você. E com o banco traseiro tão cheio de coisas... — Passou um braço em torno de sua cintura e tentou ajudá-lo a entrar. Era estranho, mas sentir a mão dela em seu corpo e o hálito morno no rosto não tornava a façanha mais fácil.
— Vejo que essa posição não é muito confortável — Gina comentou.
— Nem um pouco. — Gemendo, ajeitou-se no banco, imaginando que tipo de agonia conheceria se a puxasse para o colo. Uma coisa tinha de admitir a respeito do carro: poucos ambientes ofereceriam maior intimidade. Supunha que seria capaz de suportar uma medida razoável de dor, dada a natureza da troca.
— Isso é terrível. Pobrezinho, todo encolhido! — Gina inclinou-se e segurou-o pelas pernas, acomodando seus tornozelos sob o painel. Depois abaixou o vidro da janela e fechou a porta com cuidado. — Pode deixar a perna para fora pela janela, se preferir.
— Está brincando, não é?
— Não. Costumo dirigir nessa posição quando o calor é muito intenso.
— Você dirige... com a perna pendurada na janela? — Não sabia se estava mais perplexo por ela já ter experimentado a sugestão, ou por ter tentado convencê-lo a fazer o mesmo. Devagar, tirou os óculos escuros e massageou a testa com o dorso da mão. — Isso é muito perigoso. E refiro-me àquele tipo de perigo que se enquadra na categoria da estupidez, não na da aventura.
— Bem, pode esperar pelo guincho no seu carro, se quiser. Mas não me sentiria bem se tivesse de deixá-lo aqui sozinho. Quer que eu fique com você?
— Se quero? — O que realmente queria era uma bebida forte, uma cama macia e pelo menos seis horas para descobrir o que a faria gemer, mas não expressou o pensamento em voz alta. E apesar de estar imobilizado em um automóvel do tamanho de uma caixa de fósforos, não passaria nem mais um minuto naquela maldita estrada deserta. — Não. Já estou aqui — disse, tentando encontrar uma posição menos dolorosa para o joelho. — Sair seria pior.
— Se tem certeza... — Contornou o veículo e foi sentar-se diante do volante.
Como Harry havia pensado, a intimidade provocada pelo espaço reduzido era grande, tanto que os ombros quase se tocavam, e cada vez que Gina mudava a marcha, acabava roçando a mão em sua coxa. Nada mal.
— Tudo bem? — ela perguntou sorridente depois de alguns quilômetros.
— Melhor do que eu esperava.
— É bom saber disso. — Os olhos buscavam seu rosto seguidamente, como se ela gostasse muito do que via. — Então é um bombeiro. Onde?
Sabia que Gina estava tentando distraí-lo para fazê-lo esquecer a dor provocada pelo contato entre o joelho e o painel do carro, mas não se importava.
— Chicago.
— É mesmo? Nasci lá. Atualmente moro em Madison, um lugar muito interessante. Divertido, repleto de atrações culturais, meio maluco. — Parou e os olhos refletiram uma certa confusão. — Espere um minuto. Estava vindo de Chicago quando o encontrei parado na estrada?
— Sim. Por quê?
— Porque... Bem, se vinha realmente de Chicago, estava do lado errado de Lago Genebra quando o encontrei. Por acaso se perdeu?
— É claro que não! — Tentou erguer o corpo, mas o movimento provocou uma onda de dor que o fez fechar os olhos. — Eu estava...
— Perdido. E aposto que não quis pedir informações.
— Não estava perdido.
— Entendo. Apenas sentiu uma enorme necessidade de passar por Lago Genebra e retornar pelo lado oposto.
Podia ver o brilho de bom humor em seus olhos, mas não gostava de ser classificado como um típico desorientado.
— Ah, vamos lá — ela brincou. — Vai superar o trauma. Além do mais, cheguei a tempo de salvá-lo, e mesmo que tenha se perdido, não tem importância. Deve ser algum tipo de karma.
— Não estava perdido.
O sorriso tornou-se mais amplo.
— Mas eu o salvei.
Imaginava que sim. Harry franziu a testa. Estava habituado a assumir o papel do salvador, e de repente descobria que não gostava da idéia de ser resgatado por Gina, ou por qualquer outra mulher. Era... inquietante.
Ela ignorou seu silêncio.
— Então é bombeiro em Chicago. Interessante. Não sabia que Dino tinha parentes em profissões comuns. Não quero parecer curiosa ou indelicada, mas é intrigante, especialmente para alguém relacionado a Budge, o Rei do Salgadinho, e aos imperadores da hotelaria, como são chamados os familiares de Cho. Isso não o faz sentir-se deslocado nas reuniões de família?
Harry jamais havia se considerado parte da família, o que tornava a discussão sem sentido. Mas era bom saber que Gina o considerava diferente do restante dos Potter, especialmente quando isso criava aquele brilho de interesse em seus olhos.
— Para ser franco, venho de uma longa linhagem de pessoas simples e comuns. Isso é bom ou ruim?
— Bom. — A resposta foi acompanhada por um sorriso. — Muito bom.
Não podia acreditar que tinha forças para flertar, apesar da dor no joelho e da posição que o transformava em uma espécie de bumerangue, mas estava gostando muito do jogo.
— Você também não parece ser do tipo convencional.
Ela encolheu os ombros.
— Não sou mesmo. Isso é bom ou ruim?
— Bom. Muito bom.
Gina riu alto.
— Homens! Por que têm sempre de dar a última palavra?
Bem, aí estava um dado totalmente inesperado. Harry sabia que muitos homens gostavam de ir a casamentos pela atmosfera romântica que tomava conta das damas de honra e das outras mulheres presentes. Champanhe no gelo, música suave e muitas oportunidades de seduzir. Sim, era excelente, para aqueles que tinham a simples sedução em mente. Harry sempre havia considerado esse tipo de relação inútil e estúpida. Se nunca havia conversado com uma mulher, se não sabia quem era, por que desejaria dormir com ela?
Talvez por isso estivesse tão surpreso por ter sido contemplado com a súbita aparição de alguém tão interessante quanto Gina Weasley. Apreciava saber que alguém divertida e despretensiosa, uma mulher normal como Gina, estaria presente naquele grande evento da sociedade, o chamado casamento do milênio. Mesmo que ela fosse a escolha menos provável para preceder a entrada de Cho Chang na igreja.
— Como acabou envolvida nesse casamento? — quis saber.
— Cho foi minha companheira de quarto na universidade.
— Realmente? — Imaginara que Cho havia convivido com garotas esnobes e antipáticas como ela, moças que jamais usariam bermudas cortadas de velhas calças jeans ou dirigiriam um velho Fusca para chegarem a um casamento elegante.
— Sei que parece estranho — Gina refletiu. — E como se não bastasse dividirmos um quarto, ainda acabamos na mesma fraternidade. Meus pais são membros da contracultura hippie e ficaram envergonhados. Mas superei a fase de rebeldia bem depressa. E quanto a Cho e Dino... — Baixou a voz para um tom quase miserável. — Eu os apresentei.
— Pelo visto, também não aprova o casamento.
Mais animada, encarou-o e apoiou o pé esquerdo no banco, sob a perna direita, dirigindo com uma só mão enquanto descansava o outro braço na janela.
— Quer dizer que pensa como eu? Acha que eles formam um casal estranho? Nunca consegui entender o que Dino viu nela, e o fato de estarem juntos há tanto tempo ainda me surpreende. De certa forma, sinto-me culpada por tê-los apresentado, mas como podia saber que haveria alguma coisa entre os dois? Nunca pensei que Cho fosse o tipo de mulher capaz de despertar o interesse de Dino. Pobre Dino!
Harry também não votaria nos dois para o casal mais feliz do ano, mas no geral, o que realmente queria era que Gina prestasse mais atenção ao volante. Se batessem com aquele carro minúsculo, passaria o resto da vida com o joelho grudado na testa.
— Gina, por favor, olhe para a estrada, está bem?
— É claro. — Ela passou a olhar para a frente, mas ainda o fitava rapidamente de vez em quando. — Agora conhece meu segredo. Sou responsável pelo encontro entre aqueles dois. Dino fazia parte da minha turma de Literatura Inglesa no primeiro ano da faculdade, e Cho era minha companheira de quarto. Lembro-me como se fosse hoje. Corríamos para chegar à aula. Era outono, e o vento transportava aquele perfume característico da estação. Encontramos Dino no corredor, e eu os apresentei de maneira apressada. E aquelas poucas palavras foram suficientes. É uma pena, porque Dino sempre teve potencial. Mas Cho provoca o que há de pior nele. Não posso deixar de considerar-me culpada, e acredito ter o dever de livrá-lo do que pode ser um terrível engano. Estou enganada?
— Não sei. — Mas sabia que sua habilidade ao volante era reduzida, e a lealdade que demonstrava por Dino, um tanto estranha. — Já que foi companheira de quarto de Cho, não devia estar do lado dela?
— Céus, não! — E então, como se lembrasse que não estava falando sozinha, demonstrou um certo embaraço. — Quero dizer, é claro que também penso em Cho. O que me preocupa é que os dois podem ser infelizes. Foi o que eu quis dizer.
É claro.
Harry passara muito tempo em companhia de Dino "ímã" Potter durante a juventude para tirar suas próprias conclusões. As mulheres sempre se apaixonavam por ele. E quando o "ímã" não estava interessado... Harry lembrava-se bem de como costumavam chamar as "sobras de Dino". Era ótimo poder arriscar a sorte com as garotas que ele não queria quando tinha apenas dezoito anos de idade, mas preferia não repetir a experiência agora que chegara aos trinta.
Gina podia ser divertida, autêntica e brilhante, mas estava começando a identificar todos os sinais de que ela era apenas mais uma na longa fila de mulheres hipnotizadas pelo fabuloso Dino Potter. Uma pena.
— Oh, céus! Temos de virar aqui! — De repente Gina pisou no breque e trocou a estrada principal por uma pequena trilha de cascalho.
Harry não teve tempo para fazer mais do que emitir um grito assustado, tentando equilibrar-se enquanto o movimento o atirava sobre o console e o câmbio do automóvel. Um ombro e um braço se chocaram contra o corpo dela, enquanto a mão esquerda mergulhou entre suas pernas. Oh-oh. De repente descobria-se desejando que os carros antigos possuíssem cintos de segurança mais fortes e apreciando a posição, e tudo ao mesmo tempo.
Deixou os dedos descansarem ali, aproveitando cada segundo de intimidade.
Mas Gina reduziu a velocidade e, com delicadeza, removeu a mão dele, devolvendo-a ao outro lado do carro.
— Desculpe-me — ela disse com tom rouco. — A saída surgiu na minha frente mais depressa do que eu esperava.
— Não faz mal — garantiu. Então, por que respirava como se houvesse acabado de correr dez quilômetros.
E por que sentia aquela necessidade de devolver a mão àquele local tão íntimo e quente?
Gina concentrou-se na estrada, dirigindo com cuidado redobrado enquanto o pequeno automóvel percorria o caminho de pedras aberto entre cactos e outros tipos de vegetação.
— Ai! — Harry gemia de vez em quando. — Ai! — E tentava evitar os solavancos que ameaçavam transformá-lo num daqueles estranhos personagens de circo com pernas saindo do pescoço.
— Este é o melhor caminho. E estamos quase chegando.
— Sei... — E massageou o joelho ferido.
— Agora que já sabe o que vou fazer no casamento do milênio, por que não me conta como se viu envolvido nisso?
— Já disse, minha mãe foi casada com Budge.
— É verdade, mas ainda não consegui entender. Como eles se conheceram? Se existe alguma semelhança entre você e sua mãe, é difícil compreender como ela pode ter se sentido atraída pelo velho briguento.
Harry manteve a calma, apesar do assunto não fazer parte da lista de seus prediletos.
— Meu pai também era bombeiro. Ele morreu cedo enquanto tentava combater um incêndio, e minha mãe conseguiu um emprego como secretária de Budge.
— Ahhh...
Havia um tom de reconhecimento na resposta, uma espécie de compreensão que o surpreendeu.
— O que significa isso?
— Nada. Quero dizer, é que... Bem, deve saber que Budge é conhecido por transformar suas secretárias em esposas.
— Foram apenas duas, acho. E não importa. — Como poderia mudar de assunto? — O casamento durou pouco tempo, e logo voltamos a ser pobres e honestos, graças a Deus.
— Vejamos — ela disse, como se estivesse pensando em voz alta. — Budge se casou várias vezes. Primeiro foi Viv, a mãe de Dino. Ela é uma de minhas investidoras, e por isso a conheço relativamente bem. Depois foi a vez da princesa cujo nome nunca consigo recordar, aquela com a filha loura e antipática. E agora Mindy, ou Brenda, ou Candy, ou algo parecido. Onde é que sua mãe se encaixa no panorama?
— Ela foi a esposa número dois em um total de cinco. Quero dizer, eram cinco na última contagem que fiz. Mas com o tempo, quem sabe? Talvez Budge consiga mais esposas.
— Não acha que tudo isso é muito triste? Ele foi casado diversas vezes, e as esposas são cada vez mais jovens. Gostaria muito de ver Budge discutindo seus relacionamentos em um grupo de terapia. Ele age como um urso furioso durante quase todo o tempo, mas no fundo, creio que tem todos os atributos para se tornar uma pessoa maravilhosa.
Harry piscou. A conversa estava se tornando muito pessoal e sentimental.
— Não acho que isso seja da minha conta — disse.
— Mesmo que Budge precise de ajuda?
— Da minha ajuda? Se cair em um rio ou ficar preso em um edifício em chamas, estarei lá para salvá-lo. Mas, caso contrário, prefiro acreditar que Budge é capaz de sobreviver sozinho. Mas há uma coisa que devo reconhecer sobre o homem: é honesto sobre sua personalidade. Não engana ninguém, não usa artifícios nem mentiras para mostrar algo que não é. E se há algo que realmente odeio são mentiras e falsidades.
— Tem razão. Mesmo assim, ainda acho...
Sabia que Gina se preparava para mais um discurso sobre Budge e seu vasto potencial, e ouvi-lo seria pior do que suportar a dor em sua perna. De repente ela viu uma nova saída para uma estrada ainda menor, porém pavimentada, e parou de falar para reduzir a velocidade e fazer a curva com cuidado. Assim que entrou na estrada de asfalto, encarou-o e sorriu.
— Melhor?
Na verdade, Harry apreciara mais a primeira curva, aquela que o derrubara em seu colo. Mas achou mais prudente não revelar a opinião.
Ela reduziu a velocidade mais uma vez e parou diante de um imponente portão de ferro forjado com um par de cisnes no centro. Com as cabeças unidas e os bicos se tocando, formando um coração. Sobre eles, letras trabalhadas formavam as palavras Swan's Folly.
— Parece que chegamos — Harry concluiu. Além do portão, podia ver gramados intermináveis, árvores frondosas e uma infinidade de canteiros com flores coloridas. Era um belo lugar, uma propriedade que revelava muito sobre o que os ricos esperavam encontrar durante um final de semana no campo. Já podia sentir-se odiando tudo aquilo.
Um guarda uniforme aproximou-se com uma prancheta na mão, e Gina anunciou seus nomes. O homem pediu documentos de identificação e os dois atenderam à solicitação, esperando até que o segurança os excluísse da lista de convidados para só então deixá-los entrar.
— Uau! A segurança foi reforçada — Gina comentou enquanto dirigia pela alameda que cortava a propriedade. Passaram por um encantador riacho e por uma ponte em miniatura que parecia ter sido retirada de um conto de fadas. Além da ponte, cisnes nadavam tranqüilos em um lago azul e cristalino. — Este lugar é lindo. Tão romântico! Perfeito para um casamento.
— Humm... — Harry examinava tudo com ar crítico, notando que os arbustos haviam sido podados para assumirem o formato de gansos e outros animais. Romântico? Odiava toda aquela ostentação tola e pretensiosa.
Inclinou-se um pouco para ver o edifício principal através do pára-brisas. A construção, uma imensa, excêntrica e ampla estrutura branca, erguia-se impressionante, mas desconexa, como se alguém houvesse acrescentado novas peças onde e quando ditassem os ímpetos. Uma nova ala ali, uma varanda aqui, uma torre na frente do prédio... Não havia um estilo arquitetônico definido, era apenas um amontoado de partes que se juntavam para formar um todo desproporcional e exagerado em suas proporções. Por isso o local recebera o nome de Swan's Folly... ou Loucura do Cisne.
— Não é o máximo? — Gina perguntou.
Embora não concordasse, acreditava que o entusiasmo em seu rosto era encantador. Enquanto apontava os detalhes e comentava os vitrais coloridos, os canteiros de flores exóticas e as portas imponentes, ela se aproximou da entrada principal e estacionou o carro diante da escada.
— Gina, quer fazer um pacto?
— O quê? — ela perguntou distraída, como se ainda não houvesse superado o fascínio provocado pela aura de excentricidade e riqueza do Swan's Folly.
— Sei que vou precisar de um aliado para o final de semana. Está disposta a ajudar-me?
— Eu... sim, é claro. — E endireitou o corpo como quem se prepara para receber uma medalha. — Será uma honra ser sua aliada, Harry.
— Ótimo. — Abriu a porta, feliz por poder sair daquela armadilha disfarçada de carro. Uma vez em solo firme, com as duas pernas esticadas sob o resto do corpo, inclinou-se para falar através da janela. — Você não vem?
— Oh, sim. Estou indo.
Gina saltou e foi encontrá-lo na frente do Fusca, assumindo um ar compenetrado enquanto retirava do porta-malas os pacotes e valises que ia reunindo nos degraus de mármore. Harry decidiu retirar as malas do banco traseiro, e acrescentou essa parte da bagagem à impressionante coleção que ocupava quase toda a escada.
— Veja só quanta coisa. — Examinando a pilha, tentou adivinhar como ela conseguira colocar tudo em um Volkswagen, e o que planejava fazer com tudo aquilo. Afinal, estavam ali apenas para um final de semana, não para uma temporada de três meses no campo.
— Se puder pendurar a bolsa maior no ombro, prenderei a caixa de chapéu sob um braço e levarei sua valise com a outra mão — Gina decidiu. — E depois aquela com o...
— Eu cuido disso — Harry cortou. Chutou a valise para o lado, perto de um vaso de gerânios, disposto a voltar para buscá-la mais tarde, e pendurou uma bolsa de tapeçaria em um ombro, reservando o outro para uma enorme sacola de roupas.
— Não pode fazer isso. Está machucado — Gina protestou, agarrando-o pela camisa enquanto tentava recuperar as malas.
Harry afastou-se, empurrando as mãos que ameaçavam derrubá-lo.
— Se acha que vou deixá-la carregar tudo isso enquanto fico mancando atrás de você, está completamente enganada. O que pensa que é? Uma mula de carga?
— Harry, devolva-me essas malas agora mesmo.
— Não — ele respondeu com tom debochado, experimentando uma estranha onda de alívio ao ver o sorriso que distendeu seus lábios. — Pode me dar aquela outra, por favor?
— Não, não posso.
Enquanto Harry caminhava trôpego, oscilando sob o peso das malas, Gina o seguia apressada, o rosto corado por uma mistura de calor, prazer e preocupação.
— Por favor, Harry, largue essas malas. Você pode tropeçar e tornar essa lesão ainda pior. Quer passar meses deitado com o joelho imobilizado?
Ele parou de repente, jogou o corpo para o lado e evitou as mãos que quase conseguiram tocá-lo, imitando os movimentos de um toureiro. Ia gritar "Olé", quando percebeu que Gina tropeçava e ia de encontro a Budge Potter, o pai do noivo, o Rei do Salgadinho em pessoa. Vestindo um uniforme de tênis, Budge escolhera o pior momento possível para passar pela porta.
Rápido, Harry jogou toda a bagagem no chão e foi ajudar Gina, que parecia estar enroscada na raquete de tênis que Budge levava na mão direita.
— Desculpe, Sr. Potter — ela disse, batendo as mãos no peito e no abdome do homem como se quisesse remover a poeira de suas roupas.
— Nunca ouviram falar em empregados? — ele resmungou, mastigando um cigarro apagado enquanto olhava para a bagagem espalhada pelo chão. — O que estão fazendo? Jogando as malas pela escada para ver onde vão parar?
— Bom dia para você também — Harry respondeu com tom calmo. Gina se mostrava ansiosa, mas ele sabia que o padrasto não era o ogro que gostava de fingir ser. — E então, como se sente em um casamento no qual não é o noivo?
Budge pigarreou, ignorando a provocação.
— É bom vê-lo por aqui, garoto. Mas por que está mancando? O que aconteceu?
— Ele se machucou no trabalho — Gina respondeu ansiosa. — Lutando contra o fogo...
— Eu não disse... — Harry começou.
— Harry, Harry, quando vai desistir dessa profissão perigosa? Sua mãe o mataria se soubesse que está ferido.
O comentário era absurdo e sem sentido, mas Harry estava habituado ao raciocínio desconexo de Budge.
— Não foi nada — garantiu.
— Você parece estar muito bem. — Com o mesmo punho cerrado que segurava a raquete, Budge bateu nas costas do enteado. — Não sabia que vocês dois se conheciam. — E olhou para Gina com ar desconfiado. — São velhos amigos?
— Bem, não exatamente. Acabamos de nos conhecer. Lembra-se de mim, Sr. Potter? Ginevra Weasley. Figo de Veludo... É um de nossos investidores.
Unindo as sobrancelhas, ele respondeu:
— É claro que me lembro de você, Weasley. Felizmente chegou. Onde está a outra metade daquela estranha empresa?
— Luna? — Gina perguntou sem esconder a surpresa. — Ela está a caminho, mas preferiu viajar em outro carro.
Somente Gina poderia ter uma sócia chamada Luna, Harry decidiu.
— Não me refiro à jovem com todo aquele cabelo. Estou falando da base da organização. — Budge sorriu, e havia um brilho satisfeito em seus olhos. —- Da pessoa que tem cabelos no peito.
— Cabelos no peito? — ela repetiu aturdida.
— Sabe o que quero dizer.
— Na verdade, não...
— Estou apenas tentando controlar meu investimento — Budge continuou com aquele mesmo tom divertido e cúmplice. — Gosto de saber quem administra meu dinheiro.
— Oh, sim, é claro. E posso garantir que seu dinheiro está em boas mãos na Figo de Veludo. Os lucros estão aumentando, contratamos mais funcionários, consideramos a possibilidade de abrirmos uma filial em Chicago, e...
— Sim, sim, sim, mas ainda quero conhecer o sujeito que está no comando.
Gina hesitou por um instante.
— Mas... não há nenhum homem no comando.
— Por que todas as mulheres relutam tanto em admitir os fatos simples da vida? Em casa, quem quiser ficar por cima pode tomar a iniciativa e ainda é elogiado por isso. Mas no trabalho, se não quer que ele pense que está dando as ordens, nomeie-o vice-presidente e tudo estará resolvido.
— Mas eu não tenho...
Budge apontou o indicador para ela.
— Espero conhecer esse seu misterioso companheiro em algum momento do final de semana, aconteça o que acontecer. Providencie para que ele esteja presente à cerimônia. — E começou a se afastar, sempre mastigando o inseparável cigarro, enquanto Gina ficava ali parada e boquiaberta.
— O que significa tudo isso? — perguntou Harry.
Ela balançou a cabeça.
— Não tenho a menor idéia.
Por cima de um ombro, Budge gritou:
— Neste final de semana, Weasley. Quero conhecê-lo, ou...
E essa foi a última frase que ouviram do Rei do Salgadinho. |