CAPÍTULO DEZOITO
Ninguém atendeu à campainha na casa de Tonks. A gravação pedia simplesmente que o visitante deixasse uma mensagem, que seria respondida o mais depressa possível.
- Ela pode estar lá dentro, remoendo as idéias. - ponderou Gina, girando sobre os calcanhares, enquanto considerava a situação. - Ou pode ser que tenha ido para algum resort da moda. Ela se deixou ficar muito vulnerável nos últimos dias. E é escorregadia a nossa Tonks.
- E você se sentiria muito melhor se soubesse dela.
- É... - Com o cenho franzido, as sobrancelhas unidas, Gina pensava em usar o seu código de emergência da polícia para desligar o sistema de segurança da casa e entrar. Só que ela não tinha um motivo suficientemente forte para isto, e enfiou as mãos nos bolsos.
- Ética. - disse Harry. - É sempre uma aula de cidadania ver você lutar contra ela. Deixe-me ajudá-la. - Ele pegou um pequeno canivete e cutucou até abrir o painel eletrônico ao lado da porta.
- Meu Deus, Harry, mexer com a segurança da casa dos outros pode lhe custar seis meses de prisão domiciliar!
- Hum-hum... - Calmamente, ele estudava os circuitos. - Estou um pouco fora de forma. Nós é que fabricamos este modelo, sabia?
- Coloque esta droga no lugar, do jeito que estava, e não... - Mas ele já havia passado pelo circuito principal, trabalhando com tanta rapidez e eficiência que ela franziu a testa.
- Fora de forma, né? Eu sei!... - resmungou ela quando a luzinha da fechadura mudou de vermelha para verde.
- Eu sempre tive jeito para essas coisas. - A porta se abriu e ele a empurrou para dentro.
- Adulteração de sistema de segurança alheio, arrombamento, entrada ilegal em domicílio, invasão de propriedade privada. Olhe só, a lista está aumentando.
- Mas você vai ficar me esperando sair da cadeia, não vai? - Com uma das mãos ainda no braço de Gina, ele avaliou a sala de estar. Estava limpa, fria, tinha pouca mobília, exibia um estilo minimalista, mas caro. - Ela mora bem. - comentou ele, notando o brilho do piso vitrificado, os poucos objetos de arte colocados em destaque sobre pedestais estreitos. - Só que ela não passa muito tempo aqui.
Gina sabia que ele tinha um bom olho para aquelas coisas, e concordou.
- Não, - completou Gina - ela na verdade não vive aqui, simplesmente vem dormir às vezes. Não tem nada fora do lugar, não tem sequer uma dobra ou uma ponta amarrotada nas almofadas. - Ela passou ao lado dele, indo para a cozinha que dava para a sala, e apertou o botão da lista de alimentos disponíveis no AutoChef. - Não tem muita comida em casa também. Basicamente só queijos e frutas.
Gina se lembrou de que estava de estômago vazio, ficou tentada, mas resistiu. Saiu pela sala larga em direção a um quarto.
- Aqui é o escritório. - afirmou, olhando para o equipamento, a mesa e o telão que estavam diante dela. - Neste lugar há vestígios dela. Os sapatos estão embaixo da mesa, tem um brinco ao lado do tele-link, uma xícara vazia, provavelmente de café.
O segundo quarto era maior, e os lençóis da cama, que não havia sido feita, estavam amarrotados, como se alguém tivesse se virado de um lado para outro a noite inteira, tentando dormir.
Gina avistou a roupa que Tonks estava usando na noite em que Louise fora morta. Estava no chão, chutada para baixo de uma mesinha, onde um vaso exibia margaridas que estavam começando a murchar. Aqueles eram sinais de dor que ela ficou triste de ver. Foi até o closet, e apertou o botão que o abria.
- Nossa, como é que a gente pode saber se ela fez alguma mala? Ela tem mais roupas do que uma trupe de dez top-models.
Mesmo assim, deu uma olhada nelas enquanto Harry ia até o tele-link ao lado da cama e colocava o disco para passar as mensagens. Gina virou a cabeça, olhando por cima dos ombros, e viu o que ele ia fazer. Simplesmente encolheu os ombros.
- Já que estamos aqui, é melhor invadir a privacidade dela de vez.
Gina continuava a procurar algum sinal de que Tonks tivesse saído em viagem. Enquanto isso, as chamadas e mensagens passavam na tela.
Ouviu, com uma ponta de diversão, um papo brincalhão, de fundo abertamente sexual, entre Tonks e um homem chamado Ralph. Houve muitas insinuações, sugestões abertas e risos antes que a transmissão acabasse, com a promessa de os dois se encontrarem quando ele estivesse na cidade.
Outras ligações passaram: algumas ligadas ao trabalho, uma chamada para um restaurante próximo, pedindo uma entrega. Chamadas comuns, cotidianas. E, então, o tom mudou.
Tonks estava falando com a família de Louise Kirski, no dia seguinte ao assassinato dela. Todos estavam chorando. Talvez houvesse conforto naquilo, pensou Gina enquanto ia em direção à tela. Talvez compartilhar as lágrimas e o choque ajudasse.
- Não sei se isso tem importância neste momento, mas gostaria que vocês soubessem que a investigadora principal do caso, Weasley, tenente Weasley... Ela não vai sossegar até achar quem fez isso com Louise. Ela não vai sossegar.
- Ah, Deus! - Gina fechou os olhos quando a transmissão acabou. Depois disso não havia mais nada, só espaço ainda não gravado no disco, e ela abriu os olhos novamente. - Onde está a ligação que ela fez para a emissora? - quis saber. - Cadê a ligação? Morse disse que ela tinha ligado, pedindo autorização para passar uns dias fora.
- Pode ser que ela tenha ligado do carro, de um tele-link portátil. Ou foi até lá, em pessoa.
- Já vamos descobrir! - Ela abriu o comunicador. - Neville, eu preciso da marca do carro de Nymphadora, com modelo e número da placa.
Não levou muito tempo para acessar os dados, ler o registro da garagem e descobrir que o carro tinha saído na véspera e ainda não voltara.
- Não estou gostando disso. - Gina estava irritada ao se recostar no banco do carro de Harry. - Ela teria deixado uma mensagem para mim. Teria deixado algum aviso. Preciso conversar com um dos chefões da emissora para descobrir quem é que pegou o recado dela. - Começou a ligar para lá, do tele-link do carro de Harry, e então parou. - Tem mais uma coisa. - Consultando a agenda eletrônica, ela pediu um número diferente. - Ligue para a família Kirski, Deborah e James, em Portland, no Estado do Maine.
O aparelho começou a chamar e ela transferiu a ligação para o tele-link. Alguém atendeu bem depressa. Uma mulher de cabelos grisalhos, com olhos exaustos.
- Senhora Kirski, aqui fala a tenente Weasley, do Departamento de Polícia do Estado de Nova York.
- Sim, tenente, eu me lembro da senhorita. Alguma novidade?
- Nada que eu possa lhe adiantar no momento. Sinto muito. - Droga! Ela tinha de dar alguma esperança para a mulher. - Estamos atrás de novas informações. Estamos esperançosos, senhora Kirski.
- Nós nos despedimos de Louise hoje. - Ela lutou para dar um sorriso. - Foi reconfortante ver a quantidade de pessoas que gostavam dela. Havia tantos colegas antigos, do tempo de escola, e havia muitas flores e mensagens de todos os que trabalharam com ela em Nova York.
- Ela não vai ser esquecida, senhora Kirski. Poderia me informar se Nymphadora Tonks compareceu aos funerais hoje?
- Nós estávamos esperando por ela. - Os olhos inchados pareceram perdidos por um momento. - Estive com ela, em seu trabalho, há poucos dias, para informá-la da data e do horário do funeral. Ela me disse que viria, mas deve ter acontecido algum imprevisto.
- Ela não foi então? - Uma sensação amarga começou a se espalhar no estômago de Gina. - A senhora teve notícias dela?
- Não, não sei dela há vários dias. Ela é uma mulher muito ocupada, eu compreendo. Tem de seguir com a vida dela, é claro. O que mais poderia fazer?
Gina não podia oferecer mais nenhum conforto sem acabar trazendo novas preocupações.
- Sinto muito pela sua perda, senhora Kirski. Se tiver mais alguma pergunta, ou precisar conversar comigo, por favor, pode ligar. A qualquer hora.
- É muita gentileza sua. Tonks disse que a senhorita não ia descansar enquanto não encontrasse o homem que fez isso com a minha menininha. Você não vai descansar, mesmo, não é, tenente Weasley?
- Não, senhora. Garanto-lhe que não. - Ela desligou, deixou a cabeça pender para trás e fechou os olhos. - Eu não sou uma pessoa gentil. Não liguei para dizer que eu sentia muito, só liguei porque ela podia me informar alguma coisa sobre Tonks.
- Mas você estava sentindo muito. - Harry cobriu as mãos dela gentilmente com as dele - E foi muito gentil.
- Posso contar nos dedos de uma só mão as pessoas que têm alguma importância para mim. E isto vale para as pessoas para quem eu significo alguma coisa. Se ele tivesse vindo atrás de mim, como era de esperar, eu teria conseguido lidar com ele. E se não conseguisse...
- Cale a boca. - A mão dele apertou a dela com tanta força que Gina teve de engolir o grito, e viu que os olhos dele se tornaram ferozes e zangados. - Simplesmente cale a boca.
De forma distraída, ela massageou a mão enquanto ele dirigia como louco pelas ruas.
- Você está certo, Harry. Eu estou agindo de forma errada. Estou me responsabilizando pelo problema, e isto não ajuda nada. Há muita emoção no caso. - murmurou ela, lembrando-se do aviso do chefe. - Hoje eu comecei o dia pensando com clareza, e é isto que tenho de continuar fazendo. O próximo passo é encontrar Tonks.
Ela ligou para a emergência e ordenou uma busca em todos os lugares pela mulher e seu veículo.
Mais calmo, embora ainda sentindo o eco das palavras que ela dissera em sua barriga, Harry diminuiu a velocidade e olhou para ela.
- Você tomou as dores de quantas vítimas de homicídio em sua ilustre carreira tenente?
- Tomei as dores? É um jeito estranho de descrever isto. - Ela mexeu com os ombros, tentando formar a imagem de um homem de casaco preto comprido e carro novo. - Não sei. Centenas. Assassinato nunca sai de moda.
- Então eu diria que você tem muito mais pessoas ligadas a você, e você a elas, do que os dedos das mãos. Você precisa comer alguma coisa.
Ela estava com fome demais para argumentar com ele.
- O problema com o cruzamento dos dados é a agenda de Yvonne Metcalf. - explicou Neville. - Está cheia de pequenos códigos, e símbolos engraçadinhos. E ela vivia trocando-os, de modo que não dá para formar um padrão. Temos nomes como Docinho, Traseiro Sexy, Bundão. Temos iniciais, estrelas, corações, carinhas sorridentes ou chateadas. Vai levar tempo, muito tempo, para cruzar tudo isto com a agenda de Tonks, ou com a da promotora.
- Então, o que você está querendo me dizer é que não vai dar para fazer.
- Não disse que não vai dar. - Ele pareceu insultado.
- Certo, desculpe. Sei que você está arrebentando seus processadores neste trabalho, mas não sei quanto tempo ainda temos. Ele deve estar indo atrás de mais alguém. Até acharmos Tonks...
- Você acha que ele a apanhou, não acha? - Neville coçou o nariz, o queixo, e pegou o saco de amêndoas com cobertura doce. - Isso quebra o padrão, Weasley. Nas três vítimas que pegou, ele deixou o corpo onde alguém ia acabar tropeçando nele logo depois.
- Tudo bem, e se ele está com um novo padrão? – Gina se sentou na beira da mesa e logo mudou de posição, muito nervosa para ficar parada. - Escute, ele está pau da vida. Errou o alvo. Tudo estava indo do jeito dele, então ele estragou tudo, apagando a mulher errada. Segundo a doutora Minerva, ele conseguiu atenção, muitas horas de noticiário na TV, mas falhou. É uma questão de poder.
Gina foi até a sua janela minúscula, olhou para fora, viu um ônibus aéreo passar, fazendo barulho, na altura do andar em que estava, como um pássaro esquisito e pesado demais. Lá embaixo, as pessoas se espalhavam como formigas, andando apressadas nas calçadas, nas rampas e esteiras deslizantes, para onde quer que seus negócios urgentes as levassem.
Havia tantas pessoas, pensou Gina. Tantos alvos.
- É uma questão de poder. - repetiu Gina, franzindo a testa enquanto olhava para os pedestres que passavam. - Uma mulher está atraindo toda a atenção, toda a glória. A atenção que é dele, a glória que é dele. Quando ele a elimina, tem a emoção do ato, e consegue toda a publicidade. A mulher já era, e isto é bom. Ela estava querendo levar as coisas do jeito dela. Agora, o público está focado nele. Quem é ele? O que ele é? Onde está?
- Você está parecendo a doutora Minerva. - comentou Neville. - Só que sem o salário alto.
- Talvez uma mulher o tenha machucado. Pelo menos o que ele é. Uma mulher que pensa como homem, é independente. Porque as mulheres é que são o grande problema para ele. Não o deixam dar a última palavra, como a sua mãe fazia, talvez, ou a figura feminina mais importante em sua vida. Ele conseguiu um pouco de sucesso, mas não o bastante. Ele não consegue chegar no topo. Talvez porque uma mulher esteja no caminho. Ou várias mulheres.
Gina franziu o cenho e fechou os olhos.
- Mulheres que falam. - continuou murmurando. - Mulheres que usam a palavra para exercer poder.
- Esta frase é nova. - disse Neville.
- É da minha autoria. - replicou Gina, virando-se para trás. - Ele corta a garganta delas. Ele não as molesta, não as assalta sexualmente, nem mutila. Não se trata de poder sexual, embora a base seja sexo, no sentido de gênero. Há inúmeras maneiras de matar, Neville.
- Eu que o diga. Alguém está sempre encontrando um jeito novo e criativo de descartar o outro.
- Ele usa uma faca, e isto é uma extensão do corpo. Uma arma pessoal. Ele poderia esfaqueá-las no coração, ou rasgar-lhes a barriga para colocar as tripas para fora...
- Tá, tá bom. - Ele engoliu uma amêndoa, com coragem, e balançou a mão. - Não precisa descrever em detalhes.
- Lilá Brown deixou a marca de sua passagem pelos tribunais, e sua voz era uma ferramenta poderosa. Yvonne Metcalf era atriz, trabalhava com diálogos. Nymphadora Tonks fala para milhões de telespectadores. Talvez seja por isso que ele não veio atrás de mim. - murmurou ela. - Falar não é a fonte do meu poder.
- Você está indo muito bem, garota.
- No fundo nada disso importa. - disse Gina, balançando a cabeça. - O que temos é um homem à solta, trabalhando em uma carreira onde ele não é capaz de deixar uma marca importante, um homem que sofreu influência de uma mulher bem-sucedida.
- Isso combina com David Angelini.
- É... E o pai dele, se acrescentarmos o fato de que os seus negócios vão mal. Slade também. Mirina Angelini não é a mocinha frágil que eu pensei que fosse. E há Simas Finnighan. Ele estava apaixonado por Lilá Brown, mas ela não o estava levando muito a sério. Ai! Isso é um chute no saco!
Neville gemeu e mudou de posição.
- Ou será que tem uns dois mil homens lá fora, frustrados, zangados e com tendências à violência? - Gina expirou por entre os dentes. - Mas, em que raio de lugar Tonks está?
- Olhe, eles ainda não localizaram o carro dela. Ela não sumiu há tanto tempo, afinal.
- Algum registro de uso das fichas de crédito dela nas últimas vinte e quatro horas?
- Não. - Neville suspirou. - De qualquer modo, se ela resolveu sair do planeta, leva mais tempo para rastrear.
- Ela não saiu do planeta, ia querer ficar por perto. Droga, eu devia saber que ela ia fazer alguma coisa idiota. Dava para ver como ela estava atormentada. Dava para ver nos olhos dela.
Frustrada, Gina enfiou as mãos por dentro dos cabelos. Então, seus dedos se curvaram, tensos.
- Dava para ver nos olhos dela. - repetiu devagar. - Oh, meu Deus! Os olhos.
- O quê? O quê?
- Os olhos. Ele viu os olhos dela. - Gina pulou em direção ao tele-link. - Ligue-me com a policial Granger. - ordenou. - Ela é oficial de rua na... droga, droga, qual é mesmo? Seção 402.
- O que descobriu, Weasley?
- Vamos esperar. - Ela passou a mão na boca. - Vamos só esperar.
- Aqui fala a policial Granger. - Seu rosto apareceu na tela, com um pouco de irritação aparecendo nos cantos da boca. Havia uma confusão de ruídos ao fundo, vozes, e música.
- Nossa Granger, onde é que você está?
- Serviço de controle de multidão. - sua irritação beirava o desdém. - Parada na Avenida Lexington. É uma comemoração irlandesa.
- É o Dia da Liberdade dos Seis Condados. - explicou Neville com uma pontada de orgulho. - Não vá estragar a festa.
- Dá para você sair de perto do barulho? - gritou Gina.
- Claro. É só sair do meu posto e me afastar três quarteirões, em direção ao outro lado da cidade. - e se lembrou de acrescentar: - Senhora.
- Droga! - resmungou Gina e resolveu falar assim mesmo: - O homicídio de Louise Kirski, Granger. Vou lhe transmitir uma foto do corpo. Quero que dê uma olhada.
Gina acessou o arquivo, transferiu-o para o tele-link e enviou a foto de Louise Kirski esparramada na chuva.
- Foi desse jeito que você a encontrou? Era exatamente nessa posição que ela estava? - perguntou Gina usando apenas o áudio.
- Sim, senhora. Exatamente.
Gina diminuiu a imagem e a deixou no canto inferior da tela.
- E o capuz que cobria o rosto dela? Ninguém mexeu no capuz?
- Não, senhora. Conforme declarei em meu relatório, a equipe de TV estava gravando e tirando fotos. Eu os mandei de volta para dentro e lacrei a porta. O rosto dela estava coberto até a boca. Ela ainda não tinha sido identificada no momento em que eu cheguei à cena do crime. A declaração da testemunha que encontrou o corpo foi quase inútil. Ele estava histérico. Está tudo registrado.
- Sim, eu tenho os registros. Obrigada, Granger.
- Então, - começou Neville, assim que ela desligou a transmissão - o que é que isso lhe diz?
- Vamos procurar no registro mais uma vez. Quero a declaração inicial de Morse. - Gina se recostou para deixar Neville procurar o arquivo. Juntos, eles analisaram Morse. Seu rosto estava molhado, de chuva e suor, provavelmente lágrimas. Estava com os lábios brancos e os olhos assustados.
- O cara está em choque. - comentou Neville. - Cadáveres fazem isso com algumas pessoas. Granger é muito boa. Vai devagar e não deixa escapar nada.
- É... Ela vai subir rápido na carreira. - comentou Gina distraída.
- Então, eu vi que era uma pessoa. Um corpo. Meu Deus, todo aquele sangue! Havia tanto sangue! Em toda parte. E a garganta dela... Eu passei mal. Dava para sentir o cheiro... Eu passei mal e vomitei. Não pude evitar. Então, corri para dentro, para buscar ajuda.
- Esse é o resumo do que aconteceu. - Gina juntou as mãos e ficou tamborilando com elas no maxilar. - Certo, agora passe para a parte em que eu conversei com ele, depois que interrompemos o noticiário naquela noite.
Ele ainda estava pálido, Gina notou, mas tinha aquele arzinho de superioridade no rosto. Ela repassara todos os detalhes, como Granger já dissera, e recebeu basicamente as mesmas respostas. Ele estava mais calmo nessa hora. Isso era esperado, era o normal.
- Você tocou no corpo?
- Não, acho que... Não. Ela estava caída ali, e sua garganta estava aberta. Os olhos. Não, eu não toquei nela. Passei mal. Você provavelmente não compreende isto, Weasley. Algumas pessoas têm reações humanas básicas. Todo aquele sangue, os olhos dela. Deus!
- Ele me disse quase a mesma coisa ontem. - murmurou Gina. - Que jamais vai se esquecer do rosto dela. Dos olhos dela.
- Os olhos de um morto são fantasmagóricos. Eles podem ficar na sua cabeça.
- Eu sei, os dela estão na minha cabeça. - Ela virou o rosto e olhou para Neville. - Mas ninguém havia visto os olhos dela até eu chegar lá naquela noite, Neville. O capuz caíra sobre o rosto dela. Ninguém viu o rosto dela antes de mim. Exceto o assassino.
- Meu Deus, Weasley! Você está achando que um idiota da TV como Morse anda rasgando gargantas no seu tempo livre? Ele provavelmente falou isso para dar impacto, para se tornar mais importante.
Naquele instante, os lábios dela se curvaram, só um pouco, formando um sorriso mais de crueldade do que de diversão.
- Sim, ele gosta de se fazer de importante, não é? Gosta de ficar em foco. O que você faz quando é um repórter ambicioso, sem ética, de segunda categoria, Neville, e não consegue achar uma história quente?
- Você cria uma. - e soltou um assobio, baixinho.
- Vamos pesquisar o passado dele. Descobrir de onde veio o nosso amigo.
Não levou muito tempo para Neville conseguir uma folha com os dados básicos.
C. J. Morse havia nascido em Stamford, Connecticut, há trinta e três anos. Esta foi a primeira surpresa. Gina achava que ele era vários anos mais novo. Sua mãe, falecida, tinha chefiado a área de ciência da computação na Universidade Carnegie Melon, onde seu filho se formara em teledifusão e também em informática.
- O cara é inteligente. - comentou Neville. - Foi o vigésimo da turma.
- Estou pensando se isso foi o suficiente.
Seus registros de empregos eram variados. Ele pulara de uma emissora para outra. Ficou um ano em uma pequena emissora afiliada a uma grande rede, perto de sua cidade natal. Depois, seis meses em uma emissora via-satélite na Pensilvânia. Quase dois anos em um canal importante de Nova Los Angeles, depois uma parada rápida em uma emissora independente do Arizona, antes de vir para o leste. Mais um cargo em Detroit, até chegar em Nova York. Ele trabalhara na emissora de notícias Ali News 60, e depois fez a transferência para o Canal 75, primeiro fazendo notas sociais, e depois indo para a seção de noticiário mais sério.
- Nosso rapaz não fica muito tempo no mesmo emprego. - disse Gina. - O Canal 75 é o recorde dele, com três anos. E não há menção ao pai nos dados da família.
- Só a mamãe. - concordou Neville. - Uma mamãe bem-sucedida, com uma posição elevada.
Uma mãe morta, pensou ela. Eles iam ter de pesquisar para descobrir como foi que ela morrera.
- Vamos ver a ficha criminal.
- Está sem registros. - disse Neville, franzindo a testa para a tela. - Um rapaz de vida limpa.
- Vá para os dados da adolescência. Ora, ora... - disse ela, lendo o relatório. - Temos aqui um registro que está bloqueado, Neville. O que é que você acha que o nosso rapaz de vida limpa fez, em sua juventude perdida, que era ruim o bastante para que alguém mexesse os pauzinhos, a fim de bloquear o registro?
- Não vou levar muito tempo para descobrir. - Ele estava se empolgando, com os dedos ávidos para começar. - Vou precisar trabalhar no meu equipamento, e temos de conseguir um sinal verde do comandante.
- Pode ir em frente. E cave bem em cada um daqueles empregos. Vamos ver se houve algum problema. Acho que vou dar uma passada no Canal 75 para bater um papo agradável com o nosso garoto.
- Para enquadrá-lo, nós vamos precisar de mais do que um perfil psicológico que combine.
- Então vamos conseguir isso. - Ela fez um alongamento com o ombro, que estava retesado. - Sabe, se eu não tivesse um problema pessoal com ele, bem que podia ter enxergado antes. Quem é que se beneficiou das mortes? A mídia. - Ela fechou o coldre. - E o primeiro assassinato aconteceu quando Tonks estava, convenientemente, fazendo uma matéria fora do planeta. Morse sabia que ia pegar a história sozinho.
- E Yvonne Metcalf?
- O palhaço quase chegou na cena do crime antes de mim. Fiquei revoltada, mas a ficha não caiu. Ele estava tão frio! E então, quem é que encontra o corpo de Louise Kirski? Quem é que já estava no ar, poucos minutos depois, fazendo um relato pessoal?
- Nada disto o transforma em assassino. É isto que a promotoria vai argumentar.
- Eles querem uma conexão. Ibope. - disse ela enquanto se encaminhava para a porta. - Esta é a conexão.
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