CAPÍTULO DEZESSETE
Aos Diggory era um veterano, já com trinta anos na força policial. Ele galgara seu caminho a partir do posto de guarda, trabalhando nos bairros pobres do West Side, onde os policiais e suas presas ainda usavam revólveres. Ele até mesmo fora atingido certa vez: levou três tiros terríveis no abdômen, que poderiam ter matado um homem menos corpulento, e daria ao mais comum dos policiais motivos para considerar seriamente a escolha da carreira. Diggory, porém, estava de volta à ativa em menos de seis semanas.
Era um homem enorme, com mais de dois metros de altura e cento e dezoito quilos de puro músculo. Depois que as armas foram banidas, ele usara o corpanzil e o aterrorizante sorriso de galhofa para intimidar os adversários. Ainda tinha a cabeça de um policial de rua, e a sua ficha era tão limpa quanto água de nascente.
Tinha um rosto grande e quadrado, a pele da cor de ônix polido, mãos do tamanho de uma escotilha de navio e pouca paciência para papo-furado. Gina gostava dele e, secretamente, admitia que também tinha um pouco de medo de sua figura.
- Que monte de merda é esse em que você se enfiou, tenente?
- Senhor, - Gina olhou para ele, com Neville e Lupin dos dois lados dela, embora soubesse que, naquele momento, ela estava completamente sozinha. - David Angelini estava no local do crime, na noite em que Louise Kirski foi morta. Temos a confirmação disto. Ele não possui álibis sólidos para os horários dos outros dois assassinatos. Está devendo muito dinheiro a capangas ligados ao jogo e, com a morte da mãe, enche os bolsos com uma bela herança. Já foi confirmado que a mãe se recusou a livrar a cara dele, desta vez.
- Procurar pelo dinheiro é uma ferramenta investigativa testada e comprovada, tenente. Mas e quanto às outras duas vítimas?
Ele sabia de tudo aquilo, pensou Gina, enquanto lutava para não se mostrar embaraçada. Todos os fatos de todos os relatórios já tinham passado por ele.
- Ele conhecia Yvonne Metcalf, senhor, já estivera no apartamento dela, estavam trabalhando juntos em um projeto. Ele precisava que ela se comprometesse com ele de vez, mas ela estava se fazendo de difícil e tentava manter as suas posições. A terceira vítima foi um erro. Acreditamos plenamente que a vítima-alvo do crime era Nymphadora Tonks, que por sugestão minha, e com minha cooperação, estava colocando muita pressão na história. Ele também a conhecia pessoalmente.
- Até agora está tudo muito bem. - Sua cadeira estalou com o peso quando ele se mexeu, recostando-se nela. - Muito bem mesmo. Você o colocou em uma das cenas dos crimes, estabeleceu os motivos, pesquisou as ligações. Agora chegamos na parte difícil. Você não tem uma arma, não tem sangue algum. Não tem nadinha que possa apresentar como prova física.
- No momento, não.
- Você também tem uma confissão, mas não do acusado.
- Essa confissão nada mais é do que uma cortina de fumaça. - contribuiu Lupin. - A tentativa de um pai para proteger o filho.
- Isso é o que você acredita. - disse Diggory, com a voz calma. - O fato, porém, é que agora já está tudo registrado, e já é do conhecimento público. O perfil psicológico não combina, a arma não combina e, na minha opinião, a promotoria estava ávida demais para colocar os holofotes em cima do caso. Acontece quando a vítima é um dos seus.
Ele estendeu a mão, do tamanho de uma bandeja, antes que Gina conseguisse falar.
- Vou lhe dizer o que temos, tenente, e o que está parecendo para todas aquelas pessoas honestas que estão assistindo à TV. Temos uma família enlutada que está sendo importunada por policiais, temos provas circunstanciais e três mulheres com a garganta cortada.
- Nenhuma garganta mais foi cortada desde que David Angelini foi para a cadeia. E as acusações contra ele são válidas.
- É verdade, mas esse fato cômodo não vai nos conseguir o apoio dos mais humildes, não quando o júri começar a sentir pena dele e o advogado começar a invocar capacidade diminuída.
Ele aguardou um pouco, olhando para os rostos e tamborilando com os dedos na mesa quando viu que ninguém discordava dele.
- Você é um demônio com os números, Neville, o gênio da eletrônica. Quais são as chances de conseguirmos o grande júri se despacharmos o nosso rapaz amanhã, por obstrução de Justiça e acusações de suborno?
- Meio a meio. - respondeu Neville, encolhendo os ombros. - Isso, calculando bem por alto, depois do último boletim daquele idiota do Morse.
- Então isso não é o suficiente. Libertem-no.
- Libertá-lo? Mas, secretário Diggory...
- Tudo o que vamos conseguir se continuarmos insistindo nessas acusações é uma imprensa hostil e a compaixão da opinião pública pelo filho de uma servidora pública martirizada. Jogue-o de volta às ruas, tenente, e continue pesquisando mais a fundo. Coloque alguém colado nele. - ordenou a Lupin - E no pai dele, também. Não quero que eles dêem nem um peido sem que eu fique sabendo. E encontrem esse maldito vazamento de informações. - acrescentou, com o olhar severo. - Quero saber qual foi o imbecil que forneceu esses dados para o idiota do Morse. - Seu sorriso se alargou, então, subitamente, de modo aterrorizante. - Então, quero conversar com ele, pessoalmente. Mantenha-se longe dos Angelini, Remo. Essa não é hora de demonstrar amizade.
- Eu tinha esperança de conversar com Mirina. Talvez conseguisse persuadi-la a não dar mais nenhuma entrevista.
- Agora é tarde para implantarmos um controle de danos. - considerou Diggory. - Mantenha-se afastado. Trabalhei duro para desvincular este departamento da idéia de acobertar fatos. Quero que as coisas fiquem como estão. Consigam-me uma arma. Consigam-me algum sangue. E, pelo amor de Deus, façam isto antes de mais alguém ser retalhado. - Sua voz trovejou e seu punho golpeava a mesa enquanto ele dava as ordens com aspereza. - Neville, faça alguma das suas mágicas. Repasse os nomes que estavam nas agendas das vítimas mais uma vez e cruze-os com a agenda de Nymphadora Tonks. Encontre-me alguém que tinha interesse nessas mulheres. E só, por enquanto, senhores. - Ele se levantou. – Tenente Weasley, gostaria de mais um minuto do seu tempo.
- Secretário Diggory, - começou Lupin formalmente - quero que fique registrado que, como oficial comandante da tenente Weasley, considero as suas atividades no caso como exemplares. Seu trabalho está no nível mais elevado que se possa esperar, apesar das dificuldades provocadas pelas circunstâncias profissionais e pessoais, algumas delas causadas por mim mesmo.
Diggory franziu o cenho com suas fartas sobrancelhas.
- Estou certo de que a tenente agradece a sua avaliação, Remo. - E não disse mais nada, esperando até que os dois homens saíssem da sala. - Eu e Remo trabalhamos juntos há muito tempo. - começou, em tom de conversa. - Agora, ele acha que, já que eu estou sentado aqui, no mesmo lugar onde aquele corrupto sem-vergonha, o cara-de-pau do Snape, costumava repousar o traseiro patético, vou usar você como um bode expiatório bem disponível e lançá-la como ração aos cães da mídia. - e levantou a cabeça, encarando Gina com olhar firme. - É isso o que está achando, Weasley?
- Não, senhor. Mas o senhor poderia fazer isso.
- Sim. - Ele coçou o lado do pescoço. - Poderia. Você melou essa investigação, tenente?
- Talvez tenha feito isso, senhor. - Aquilo foi duro de engolir. - Se David Angelini for inocente...
- É o tribunal que decide a inocência ou a culpa. - interrompeu ele. - Você apenas recolhe as evidências. Você recolheu algumas evidências consistentes, e o panaca estava lá, junto de Louise Kirski. Se ele não a matou, o canalha testemunhou uma mulher ser assassinada e saiu de fininho. Para mim não tem grande valor, como pessoa.
Diggory uniu e elevou os dedos, olhando por cima deles.
- Você sabe, Weasley, em que situação eu retiraria você do caso? Se eu achasse que você estava atolada demais em culpa, por causa de Louise Kirski. - Quando ela abriu a boca para falar e tornou a fechá-la, ele lhe lançou um sorriso, com os lábios finos. - Sim, é melhor ficar calada. Você jogou a isca, arriscou. Havia uma possibilidade muito boa de ele vir atrás de você. Eu teria feito a mesma coisa em meus velhos dias de glória. - acrescentou, sentindo uma ponta de tristeza por eles terem acabado. - O problema é que ele não mordeu a isca, e uma pobre mulher, com vício de fumar, foi atingida por engano. Você acha que é responsável por isso?
Ela sentiu vontade de mentir, mas acabou desistindo e escolhendo a verdade.
- Sim.
- Pois supere isso! - disse ele com voz forte. - O problema com este caso é que há muitas emoções envolvidas. Remo não consegue superar o pesar, você não consegue superar a culpa. Isto os transforma em dois inúteis. Quer se sentir culpada, quer sentir revolta? Espere até colocar as mãos nele. Fui claro?
- Sim, senhor.
Satisfeito, ele se recostou na cadeira novamente.
- Assim que você sair desta sala, a mídia vai estar em cima de você, como um bando de piolhos.
- Eu sei lidar com a mídia.
- Estou certo de que sabe. - E suspirou. - Eu sei lidar, também. Agora tenho a porcaria de uma entrevista coletiva para encarar. Pode sair.
Havia apenas um lugar para ir, e era de volta ao começo. Gina ficou na calçada, do lado de fora do Bar Cinco Luas, e olhava para o chão. Revivendo mentalmente a cena, caminhou até a entrada do metro.
Estava chovendo, lembrou. Estou segurando o guarda-chuva com uma das mãos, a bolsa pendurada no ombro, segurando-a com firmeza. É uma região perigosa. Estou pau da vida. Caminho rápido, mas fico com um olho aberto, olhando em volta para sacar alguém que queira minha bolsa tanto quanto eu.
Ela entrou no Cinco Luas, ignorando os rápidos olhares e o rosto brando do andróide atrás do bar, enquanto tentava imaginar os pensamentos de Lilá Brown.
Lugar nojento. Sujo. Só Deus sabe o que eu posso pegar na roupa só de sentar. Olho para o relógio. Onde, diabos, ele está? Vamos acabar logo com isso. Por que será que ele quis que eu o encontrasse aqui? Burra, burra! Devia ter usado o meu escritório. Meu território.
E por que não fiz isso?
Porque era um assunto particular, pensou Gina, fechando os olhos. Era algo muito pessoal. Lá há muita gente, haveria muitas perguntas. Não é um assunto da cidade. É um assunto dela.
Por que não em seu apartamento?
Porque ela não o queria lá. Estava muito zangada... Aborrecida... Ansiosa para brigar quando ele indicou a hora e o lugar.
Não, ela estava apenas zangada, impaciente, decidiu Gina ao se lembrar da declaração do andróide que servia no bar. Ela ficou olhando para o relógio o tempo todo, franzindo a testa, desistiu e foi embora.
Gina refez o caminho que ela tomou, lembrando-se do guarda-chuva e da bolsa.
Passos rápidos, com os saltos fazendo barulho no piso. Então apareceu alguém. Ela parou. Será que ela o viu, será que o reconheceu? Tem de ter reconhecido, estavam cara a cara. Talvez ela tenha dito a ele “Você está atrasado!”
Ele trabalha rápido. É uma vizinhança com má fama. Não há muitos carros passando, mas nunca se sabe. As luzes de segurança são quase inexistentes, como costuma acontecer em regiões como aquela. Ninguém reclama muito, porque é mais fácil agir no escuro.
Mas alguém podia sair do bar, ou do clube do outro lado da rua. Um golpe rápido e ela está caída. Ele fica cheio de sangue. Com o corte abrupto, ele deve estar coberto de sangue.
Ele pega o guarda-chuva dela. Um impulso, ou talvez para usar como escudo.
Sai dali andando depressa. Não, o metro não! Ele está coberto de sangue. Mesmo em uma região como aquela, alguém ia notar.
Gina andou dois quarteirões nas duas direções, depois tornou a andar, fazendo perguntas a todos que encontrava pela rua. Na maioria das vezes, a resposta era um dar de ombros ou olhares furiosos. Policiais não eram figuras muito populares no West End.
Observou uma mulher circulando por ali, e desconfiou que ela estava usando mais coisas no corpo do que aquele monte de colares de contas e penas; ela veio da esquina, passando lentamente em um pequeno skate aéreo motorizado. Fez cara feia e saiu correndo atrás de Gina.
- Ei, você já esteve por aqui antes. - disse a mulher.
Gina olhou para trás, na direção dela. Era tão branca que parecia quase invisível. Seu rosto desbotado tinha a textura de cimento branco, e os cabelos picotados estavam tão curtos que o couro cabeludo aparecia branco como cera; seus olhos eram sem cor e sem vida, típicos de quem tinha acabado de tomar uma dose.
Uma doidona, pensou Gina. Dava para ver que a mulher usava a droga em forma de tablete branco que mantinha a mente enevoada e os pigmentos do corpo totalmente descorados.
- É... já estive por aqui sim. - respondeu Gina.
- Você é da polícia! - a drogada esticou o pescoço, com as juntas retesadas, parecendo um andróide que precisava de manutenção. Um sinal de que estava no último grau do vício. - Eu vi você conversando com o Crack um tempo atrás. Aquele é um cara legal!
- É... Ele é um cara muito legal. Você estava por aqui na noite em que apagaram a mulher ali adiante, na rua?
- Ah, uma dona bonitona, elegante, rica, toda metida. Vi, mas só na reportagem da TV. Eu tava na clínica de desintoxicação.
Gina engoliu a vontade de praguejar, e então parou e voltou para trás.
- Ei, se você estava na desintoxicação, como foi que me viu conversando com o Crack?
- Isso foi outro dia. Talvez no dia seguinte. O tempo é relativo, certo?
- Talvez você tenha visto a dona elegante e rica outro dia, antes de ela aparecer morta na TV.
- Não. - A mulher, que parecia albina, chupou a ponta do dedo. - Não mesmo!
Gina olhou para o prédio que ficava atrás da drogada e analisou a vista que ele oferecia de toda a rua.
- É aqui que você mora?
- Eu moro aqui, às vezes ali... De vez em quando desabo em um quarto, lá em cima.
- Você estava lá na noite em que cortaram a garganta da dona bonitona?
- Provavelmente. Estava sem grana. - e abriu o que pareceu ser um sorriso, com dentes pequenos e arredondados. Seu hálito era podre. - Não tem muita graça ficar pelas ruas quando a gente está dura.
- Estava chovendo. - Gina tentou ajudar.
- Ah, foi... Eu gosto de chuva. - Seus músculos continuavam a se retesar, mas seu olhar adquiriu um ar sonhador. - Fico vendo a chuva, pela janela.
- Você viu mais alguma coisa pela janela?
- As pessoas vêm e vão. - disse com voz cantada. - As vezes dá pra gente ouvir a música lá do clube, na esquina. Mas naquela noite não. A chuva tava muito forte. Neguinho ficava fugindo dela. Até parece que ia derreter, sei lá...
- Você viu alguém correndo na chuva.
- Talvez. - Os olhos sem cor ganharam um pouco de vida. - Quanto isso vale?
Gina enfiou a mão no bolso. Tinha poucas fichas de crédito, mas dava para negociar. Os olhos da doidona rolaram de alegria, e ela estendeu a mão.
- Primeiro conte o que viu. - disse Gina bem devagar, colocando as fichas fora do alcance dela.
- Um cara mijando ali no beco. - E deu de ombros, com o olhar colado nas fichas. - Talvez estivesse batendo umazinha. Não dá pra dizer ao certo.
- Ele trazia alguma coisa? Tinha algo na mão?
- Só o pinto. - e riu tão alto da própria piada que quase se desequilibrou e caiu. Seus olhos já estavam começando a lacrimejar, sem parar. - Ele foi embora, no meio da chuva. Quase não tinha ninguém na rua por causa da chuva. Aí o cara entrou no carro.
- O mesmo cara?
- Não, outro cara. Tinha estacionado o carro ali adiante. - e gesticulou sem precisão. - Ele não era daqui da área, não.
- Por quê?
- Porque o carro era novinho. Ninguém tem um carro novinho assim por aqui. Quase ninguém tem carro. Agora, o Crack, ele sim tem um... E aquele pentelho do Reeve, do apartamento em frente, tem um também. Só que eles não são novinhos, não.
- Conte-me sobre o cara que entrou no carro.
- Entrou no carro e se mandou.
- Que horas eram?
- Ei, eu tenho cara de relógio? Tique-taque... - Ela deu outra risada rouca. - Só sei que tava de noite. De noite é melhor. De dia meus olhos doem - reclamou - porque eu perdi meus óculos escuros.
Gina pegou um par de protetores para os olhos no bolso. Ela nunca se lembrava de usar aquela droga mesmo. Entregou à albina, que os agarrou na mesma hora.
- Que troço vagabundo! Equipamento da polícia, uma merda!
- Que roupa ele estava usando? O cara que entrou no carro?
- Eu, hein?... Sei lá! - A doidona ficou brincando com os óculos e os colocou. Seus olhos não arderam tanto por trás das lentes tratadas. - Tava de casacão, acho. Um casaco comprido, escuro, com as pontas balançando no vento. É, ficou balançando na hora em que ele fechou o guarda-chuva.
Gina sentiu um choque no estômago, como se tivesse levado um soco.
- Ele tinha um... guarda-chuva?
- Ué... Tava chovendo! Tem gente que não gosta de se molhar. Era muito bonito, o guarda-chuva. - disse, sonhando novamente. - Tinha uma cor brilhante.
- Era de que cor?
- Brilhante. - repetiu. - E aí, vai ou não vai me dar as fichas?
- Tá, você vai ganhar a grana. - Mas Gina agarrou o braço dela e a levou até os degraus despedaçados da entrada do edifício, e a empurrou, forçando-a a se sentar. - Só que, antes, a gente precisa conversar mais um pouquinho.
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- Os peritos a deixaram passar. - Gina andava de um lado para outro em sua sala enquanto Neville a ouvia, recostado na cadeira. - Ela entrou na desintoxicação um dia depois do assassinato. Eu verifiquei. Saiu há uma semana.
- Você arrumou uma viciada albina.
- Ela o viu, Neville. Viu quando ele entrou no carro, viu o guarda-chuva.
- Você sabe como funciona a visão de uma pessoa doidona, Weasley. No escuro, debaixo de chuva, do outro lado da rua?
- Mas ela sabia do guarda-chuva. Droga, ninguém mais sabia do guarda-chuva!
- E a cor era, abre aspas, brilhante. - Ele levantou as duas mãos antes que Gina conseguisse replicar. - Eu estou só tentando evitar um pouco de aporrinhação para o seu lado. Se você vier com a idéia de colocar os Angelini em uma fila de suspeitos diante de uma drogada em último grau, os advogados deles vão sapatear em cima de sua cabeça, garota.
Gina havia pensado nisso. E ela, também, rejeitara a idéia.
- Eu sei que ela não ia adiantar nada em uma sessão de identificação direta. Não sou burra. Mas era um homem, ela tinha certeza disso. Ele saiu de carro. Estava carregando o guarda-chuva. Usava um casaco comprido e preto.
- E isso bate com a declaração de David Angelini.
- Era um carro novo. Eu arranquei isto dela. Polido, brilhante.
- De novo, a história do brilhante.
- E daí? Eles não enxergam as cores direito. - replicou ela. - O cara estava sozinho, e o carro era um veículo pequeno, pessoal. A porta do motorista abria para cima, e não para o lado, e ele teve de se abaixar e virar a cabeça para entrar.
- Podia ser um Rocket, um Midas ou um Spur. Talvez um Midget, se for o modelo antigo.
- Ela disse que era novo, e ela manja de carros. Gosta de ficar olhando.
- Tudo bem, vou pesquisar. - e deu um pequeno sorriso. - Você faz alguma idéia de quantos desses modelos foram vendidos nos últimos dois anos só na região da Grande Nova York? Agora, se ela viesse com o número da placa, mesmo que não estivesse inteiro...
- Pare de reclamar. Eu voltei ao prédio de Yvonne Metcalf. Tem umas duas dúzias de carros novinhos em folha na garagem dela.
- Ah, que alegria!
- É possível que ele seja um vizinho dela. - disse Gina encolhendo os ombros. Era uma possibilidade muito remota. - Onde quer que ele more, tem de ser capaz de entrar e sair da área sem ser notado. Ou estar em um lugar que as pessoas não reparem. Talvez ele deixe o casaco no carro, ou o guarde em algum lugar, para poder levar para dentro de casa e limpá-lo. Tem de haver manchas de sangue nesse carro, Neville, e no casaco também, por mais que ele o tenha lavado e esfregado. Tenho de dar uma passada no Canal 75.
- Ficou maluca?
- Preciso conversar com Tonks. Ela está fugindo de mim.
- Jesus! Você vai entrar bem na cova do leão!
- Ah, eu vou estar bem. - e deu um sorriso cruel. - Vou levar Harry comigo. Eles têm medo dele.
- Foi tão legal você pedir para eu vir junto. - disse Harry enquanto estacionava o carro na área de visitantes do Canal 75 e sorria para ela. - Fiquei comovido.
- Tudo bem, eu lhe devo essa explicação. - Aquele homem não deixava nada escapar, pensou Gina com indignação enquanto saltava do carro.
- E eu estou cobrando. - Ele a pegou pelo braço. - Pode começar a pagar me contando por que quis que eu viesse até aqui com você.
- Já lhe disse, vai nos poupar tempo, já que você quer ir nessa tal de ópera.
Muito lentamente, e com todo o cuidado, ele olhou para ela de cima a baixo, reparando nas calças empoeiradas e nas botas surradas.
- Querida Gina, embora, para mim, você pareça sempre perfeita, não vai à ópera vestida desse jeito. Então, ia ter de passar em casa para trocar de roupa, de qualquer modo. Vamos lá, conte-me a verdade.
- Talvez eu não queira muito ir à ópera.
- Eu sei, você já me disse isso. Várias vezes, acho. Só que nós tínhamos um trato.
Ela baixou os olhos e ficou brincando com um dos botões da camisa dele.
- Ah, Harry, é só cantoria!
- Eu concordei em ficar sentado por duas apresentações, no Esquilo Azul, por causa da sua idéia de ajudar Mavis a assinar contrato com uma gravadora. E ninguém... Ninguém com ouvidos, bem entendido, ia considerar aquilo cantoria de qualquer tipo.
Ela expirou com força. Trato era trato, afinal de contas.
- Tudo bem, está certo. Já disse que eu vou.
- Agora que você já conseguiu me desviar da pergunta, vou repeti-la. Por que estou aqui?
Ela olhou para cima, subindo do botão para o rosto dele. Era sempre terrível para ela admitir que precisava de ajuda.
- É que o Neville está enterrado em uma pesquisa eletrônica. Não podia parar agora. Eu queria outro par de olhos, ouvidos, outra impressão.
- Sei. - Seus lábios sorriram. - Isso quer dizer que eu sou a sua segunda escolha.
- Você é a minha primeira escolha para alguém que não é da polícia. Você saca bem as pessoas.
- Sinto-me elogiado. E talvez, já que estou aqui mesmo, possa aproveitar e quebrar a cara de Morse para você.
- Eu gosto de você, Harry. - O sorriso dela veio rápido. - Eu gosto mesmo de você.
- Eu também gosto muito de você. Isto significa um sinal verde? Eu adoraria fazer isso.
Ela riu, mas, no fundo, havia uma parte dela que gostava da idéia de ter um vingador só dela.
- Essa foi uma boa idéia, Harry, mas eu realmente preferia partir a cara dele eu mesma. Na hora certa e no lugar certo.
- Posso assistir?
- Claro. Mas, por ora, dá para ser apenas o rico e poderoso Potter, meu troféu pessoal?
- Ah, que frase machista! Fiquei excitado!
- Ótimo. Segure o tesão. Talvez a gente dispense a ópera, afinal.
Eles entraram juntos pelo saguão principal e Harry teve o prazer de vê-la bancar a policial. Gina balançou o distintivo para o segurança e deu a ele uma sugestão enérgica para não pegar no pé dela, e então seguiu a passos largos na direção do elevador.
- Adoro ver você trabalhar. - murmurou no ouvido dela. Você é tão... durona! - completou, enquanto a mão descia pelas costas dela, em direção ao seu traseiro.
- Pode parar!
- Viu o que eu quis dizer? - e esfregou a barriga, no lugar que o cotovelo dela atingira. - Bata em mim de novo. Vou acabar gostando disso.
Ela conseguiu, com dificuldade, fazer a gargalhada se transformar em uma espécie de ronco.
- Civis! - foi tudo o que falou.
A sala do noticiário estava cheia e barulhenta. Pelo menos metade dos repórteres de plantão estava ligada em tele-links, fones de ouvido ou computadores. Telões exibiam o que estava sendo transmitido. Várias conversas pararam na mesma hora, quando Gina e Harry saíram do elevador. Então, como em uma matilha em que todos os cães farejaram algo ao mesmo tempo, os repórteres se embolaram para chegar perto.
- Para trás! - ordenou Gina com tanta energia que um dos ávidos repórteres deu um passo brusco para trás e pisou no pé de um colega. - Ninguém vai receber nenhum comentário. Ninguém vai ter nada até eu estar pronta.
- Se eu realmente comprar este lugar - disse Harry a Gina com a voz na altura exata para ser ouvida pelos mais próximos - vou ter de fazer alguns cortes de pessoal.
Esta frase causou uma sensação de desconforto quase palpável. Gina olhou em volta e parou diante de um rosto que conseguiu reconhecer.
- Rigley - perguntou ela - onde está Nymphadora Tonks?
- Oi, tenente. - O repórter, de repente, se transformou todo em dentes, cabelos e ambição. - Se a senhorita quiser esperar na minha mesa. - convidou ele, gesticulando para o seu espaço de trabalho.
- Nymphdora Tonks. - repetiu, com a voz rápida como uma bala. - Onde está ela?
- Eu não a vi o dia todo. Apresentei o noticiário da manhã, no lugar dela.
- Tonks ligou. - Distribuindo sorrisos, Morse veio chegando devagar. - Está dando um tempo. - explicou ele, e seu rosto mutante assumiu feições mais sombrias. - Ela está muito arrasada, por causa de Louise. Todos nós estamos.
- Ela está em casa?
- Disse apenas que precisava dar um tempo, é tudo o que eu sei. O diretor lhe adiantou alguns dias de folga. Ela tinha duas semanas de férias vencendo. Estou assumindo o lugar dela. - Seu sorriso se iluminou novamente. - Portanto, Weasley, se estiver precisando aparecer na TV é só falar comigo.
- Já apareci demais no seu programa, Morse.
- Tudo bem então. - Ele a dispensou e fixou o olhar em Harry. Seu sorriso se escancarou ainda mais. - É um prazer conhecê-lo. Você é um homem muito difícil de se contatar.
Disposto a insultá-lo abertamente, Harry ignorou a mão que Morse lhe estendeu.
- Eu dou retorno apenas às pessoas que considero interessantes. - Morse abaixou a mão, mas manteve o sorriso.
- Pois eu estou certo de que, se me concedesse alguns minutos, eu poderia encontrar várias áreas de interesse para você.
O sorriso de Harry apareceu rápido e letal.
- Morse, você é realmente um idiota, não é?
- Calma, rapaz. - murmurou Gina, dando um tapinha no braço de Harry. - Quem é que lhe passou dados confidenciais?
Morse estava obviamente lutando para recuperar a dignidade. Ele olhou diretamente para Gina, e quase conseguiu exibir um ar de desdém.
- Ora, ora, tenente, nossas fontes são protegidas. Não vamos nos esquecer da Constituição. - Patrioticamente, espalmou a mão sobre o coração. - Agora, se você quiser comentar, desmentir ou adicionar alguma informação nova, ficarei mais do que feliz em escutá-la.
- Então, por que não tentamos isto... - disse ela mudando de assunto. - Você encontrou o corpo de Louise Kirski enquanto ele ainda estava quente.
- Exato. - Ele fechou a boca e assumiu um ar amargo. - Já lhe dei a minha declaração.
- Você estava bastante abalado, não estava? Apavorado. Chegou a despejar todo o jantar nos arbustos. Está se sentindo melhor agora?
- Aquilo foi algo que eu jamais esquecerei, mas, sim, estou me sentindo melhor. Obrigado por perguntar.
Gina andou na direção dele, fazendo-o recuar.
- Você se sentiu melhor bem depressa, rápido o bastante para entrar no ar alguns minutos depois, certificando-se de que havia uma câmera bem posicionada para pegar um lindo close de sua colega morta.
- Agir com rapidez é parte do meu trabalho. Fiz o que fui treinado a fazer. Isto não significa que eu não tenha sentido. - Sua voz estremeceu e foi habilmente controlada. - Isto não significa que eu não veja o rosto dela, os seus olhos, a cada momento em que tento dormir à noite.
- Já parou para pensar no que teria acontecido se você tivesse chegado cinco minutos mais cedo?
Isto o deixou chocado, e embora Gina soubesse que era cruel, uma coisa pessoal, aquilo a deixava satisfeita.
- Sim, já pensei nisso. - disse ele com dignidade. - Eu poderia ter visto o assassino, ou tê-lo impedido. Louise poderia estar viva se eu não tivesse ficado preso no trânsito. Só que isto não muda os fatos. Ela está morta, assim como as outras duas. E você ainda não tem ninguém preso.
- Talvez não tenha lhe ocorrido, Morse, que é você que o está alimentando. É você que está oferecendo exatamente o que ele deseja. - Gina desviou o olhar de Morse, e olhou em volta da sala, para todas as pessoas que estavam ouvindo, ávidas. - Ele deve adorar assistir a todas aquelas reportagens, saber de todos os detalhes, das especulações. Você o transformou no maior astro da TV.
- A nossa responsabilidade é relatar... - começou Morse.
- Morse, você não sabe nada sobre responsabilidade. Tudo o que você sabe é contar os minutos que ficou no ar, bem na frente e no centro da tela. Quanto mais pessoas morrerem, maior vai ser o seu ibope. Pode falar no seu noticiário que eu disse exatamente estas palavras - e girou o corpo para ir embora.
- Está se sentindo melhor? - perguntou Harry quando eles já estavam novamente do lado de fora.
- Não tanto assim. Quais as suas impressões?
- A sala de noticiário está tumultuada, com gente demais fazendo coisas demais. Estão todos assustados. E aquele sujeito com quem você falou no início, sobre Tonks?
- Rigley. Ele é peixe pequeno. Acho que o contrataram por causa dos dentes.
- Ele anda muito nervoso. Vários deles pareceram envergonhados quando você fez o seu pequeno discurso. Viraram para o outro lado, e tentaram parecer ocupados, mas não estavam fazendo nada. Outros me pareceram um pouco satisfeitos quando você descascou o Morse. Acho que ele não é muito querido.
- Grande surpresa!
- Ele é melhor do que eu pensava. - avaliou Harry.
- Morse? Melhor em quê? Em falar merda?
- Em trabalhar a imagem. - corrigiu Harry. - O que é, muitas vezes, a mesma coisa. Ele extrai todas aquelas emoções. Não sente nenhuma delas, mas sabe como fazê-las aparecer em seu rosto e na sua voz. Ele está no emprego certo e, definitivamente, vai subir depressa.
- Que Deus nos ajude! - Ela se encostou no carro de Harry. - Você acha que ele sabe mais coisas do que jogou no ar?
- Acho que isso é possível. Altamente possível. Ele está adorando esticar ao máximo este caso, especialmente agora que está à frente da história. E ele odeia você, profundamente.
- Ai, agora eu fiquei triste! - Ela começou a abrir a porta e depois se virou de novo. - Ele me odeia?
- Vai arruiná-la, se conseguir. Tenha cuidado.
- Ele pode me fazer de boba, mas não pode me arruinar. - e escancarou a porta. - Onde é que a Tonks se enfiou, Harry? Isso não é do feitio dela. Compreendo o que ela está sentindo, por causa de Louise, mas não faz o tipo dela sumir assim, sem me avisar, e deixar uma matéria importante como esta para aquele canalha.
- As pessoas reagem de formas diferentes ao choque e ao pesar.
- Isso é burrice. Ela era um alvo. Pode, muito bem, continuar sendo. Tenho de encontrá-la.
- Esse é o seu jeito de escapar da ópera? - Gina entrou no carro e esticou as pernas.
- Não. Escapar da ópera é apenas um benefício secundário. Vamos dar uma passada na casa dela, está bem? Ela mora na Rua Dezoito, entre a Segunda e a Terceira Avenidas.
- Tudo bem. Mas você não vai ter desculpas para escapar do coquetel que eu vou oferecer amanhã à noite.
- Coquetel? Que coquetel?
- Aquele que eu já marquei há mais de um mês. - lembrou ele enquanto entrava no carro, ao lado dela. - Para dar a partida na arrecadação de fundos para o Instituto de Artes da Estação Grimaldi, em Mónaco. Do qual você concordou em participar e servir de anfitriã.
Gina se lembrava, claro. Ele até trouxera para casa um vestido sofisticado que ela deveria usar.
- Você tem certeza de que eu não estava bêbada quando concordei com isso? Palavra de bêbado não vale nada.
- Não, você não estava bêbada. - e sorriu enquanto dirigia o carro para fora do estacionamento. - Entretanto, você estava nua, ofegante, e quase implorando por alguma coisa, segundo me pareceu.
- Isso é mentira! - Na verdade, pensou, cruzando os braços, talvez ele estivesse com a razão. Os detalhes não estavam muito claros. - Tudo bem, você venceu, vou estar lá, vou estar lá com um sorriso idiota, usando um vestido todo enfeitado, que deve ter custado muito dinheiro para pouco material. A não ser... que alguma coisa apareça.
- Alguma coisa?
Ela suspirou. Ele só pedia para que ela participasse de um daqueles shows tolos quando era importante para ele.
- Algum assunto da polícia. Só se for algum assunto da polícia, e muito importante. Tirando isto, prometo que vou ficar colada em você, aturando a lengalenga toda.
- Acho que você não vai nem tentar curtir a noite, não é?
- Talvez eu tente. - Ela virou a cabeça e, em um impulso, levou a mão carinhosamente até a bochecha dele. - Só um pouquinho.
Agradecimento Especial:
Bianca: O Harry ta de volta, agora a investigação ficou toda enrolada. No próximo capitulo, a revelação de quem é o assassino. Garanto a você que você acertou em um de seus palpites quem ele era, mas eu não podia dizer claramente que era ele, por favor me desculpe por isso. Beijão e espero que goste do capitulo.
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