CAPÍTULO DEZ
- Primeiro, vou gravar a minha introdução. - Tonks olhou em volta da sala de Gina e ergueu uma sobrancelha. - Não parece um santuário.
- Como disse?
- Até agora você vinha guardando esta sala como se fosse solo sagrado. - Com casualidade, Tonks ajustava o ângulo do monitor de Gina. - Eu esperava mais do que um closet apertado, com uma mesa de trabalho e duas cadeiras tão gastas.
- Meu coração se sente em casa aqui. - respondeu Gina calmamente e se recostou em uma das cadeiras gastas.
Tonks jamais se considerara claustrofóbica, mas achou que o bege das paredes as fazia parecerem terrivelmente próximas, e achou que devia reavaliar a sua fobia de lugares fechados. A única janela da sala era minúscula, e embora, sem dúvida, fosse à prova de balas, não tinha película protetora e oferecia uma visão estreita do movimentado tráfego acima de uma estação de ônibus aéreos.
A pequena sala, avaliou Tonks, parecia apinhada de gente.
- Eu achei que, depois que resolveu o caso DeBlass no inverno passado, você ganharia uma sala mais tchan, com uma janela de verdade, e talvez um tapete.
- Você veio aqui para redecorar o ambiente ou para gravar uma matéria?
- E o seu equipamento, Gina, é patético. - Divertindo-se com aquilo, Tonks estalou a língua e balançou a cabeça ao olhar para os aparelhos de Gina. - Lá no estúdio, relíquias como estas são relegadas aos empregados do baixo escalão, ou, o que é mais provável, doadas em caridade para algum centro de reabilitação.
Gina disse a si mesma que não ia fazer cara feia e comentou:
- Então, na próxima rodada de doações lembre-se de mandar alguma coisa para o Fundo do Departamento de Polícia e Segurança Pública.
- Lá no Canal 75 - sorriu Tonks encostando-se à mesa - até mesmo a ralé possui um AutoChef pessoal na sala.
- Estou aprendendo a odiar você, Tonks.
- E eu estou só colocando você em ponto de bala para a entrevista. Sabe o que eu queria, Weasley, já que você está a fim de ganhar espaço na mídia? Uma entrevista pessoal e exclusiva, uma matéria em profundidade, mostrando a mulher por trás do distintivo. A vida e os amores de Gina Weasley, tenente do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York. O lado pessoal de uma servidora pública.
Gina não resistiu e acabou fazendo cara feia, afinal.
- Não abuse da sorte, Tonks.
- Ora, mas abusar da sorte é o que eu sei fazer de melhor. - Tonks se atirou em uma das cadeiras e a arrastou para o lado. - Como está o ângulo, Pete?
O operador da câmera segurou uma pequena tela sem fio na palma da mão e a levantou até a altura do rosto.
- Legal. - respondeu ele.
- Pete é um homem de poucas palavras. - comentou Tonks. - É assim que eu gosto deles. Quer ajeitar o cabelo?
Gina se segurou e por pouco não passou os dedos pelo cabelo em desalinho. Ela detestava estar diante de uma câmera. Odiava aquilo.
- Não. - respondeu.
- Você é quem sabe. - Tonks pegou um pequeno estojo de maquiagem em sua bolsa imensa, aplicou algo sobre os olhos e inspecionou os dentes para ver se não havia manchas de batom. - Tudo bem. - Jogou o estojo de volta na bolsa, cruzou as pernas com elegância, provocando um pequeno farfalhar de seda deslizando sobre seda, e se virou de frente para a câmera. - Pode gravar.
- Gravando!
Seu rosto se modificou. Gina achou interessante olhar a transformação. No momento em que a luz vermelha da câmera se acendeu, as feições de Tonks se iluminaram e ganharam intensidade. Sua voz, que até aquele instante era rápida e leve, ficou mais pausada e profunda, exigindo atenção.
- Eu sou Nymphadora Tonks, falando direto da sala da tenente Gina Weasley, na Divisão de Homicídios da Central de Polícia. Esta entrevista exclusiva tem como tema os assassinatos violentos, e ainda não solucionados, da promotora Lilá Brown e da premiada atriz Yvonne Metcalf. Tenente, os dois crimes têm ligação um com o outro?
- As provas indicam essa possibilidade. Podemos confirmar, a partir do relatório do médico legista, que as duas vítimas foram mortas pela mesma arma e pela mesma mão.
- Não há dúvida quanto a isso?
- Nenhuma. Ambas foram assassinadas por uma lâmina fina de corte reto, com quase vinte centímetros de comprimento, que vai se estreitando do cabo até a ponta, e é extremamente afiada. Nos dois casos, a vítima foi atacada de frente, com um golpe firme da lâmina que rasgou a garganta, da direita para a esquerda, em um ângulo ligeiramente elevado.
Gina pegou uma caneta comprida em cima da mesa, fazendo Tonks se encolher e piscar de susto quando a arrastou a poucos milímetros da garganta da repórter, explicando:
- Foi desse jeito.
- Entendo.
- O golpe - continuou Gina - cortou a veia jugular, provocando uma volumosa e instantânea perda de sangue, incapacitando a vítima de imediato e evitando que ela gritasse por socorro ou tentasse se defender de algum modo. A morte ocorreu em poucos segundos.
- Em outras palavras, o criminoso tinha pouco tempo a perder. Um ataque frontal, tenente, não indicaria que as vítimas conheciam o assassino?
- Não necessariamente, mas há outra prova que leva à conclusão de que as vítimas conheciam a pessoa que as atacou, ou estavam esperando para se encontrar com alguém. A ausência de quaisquer feridas defensivas, por exemplo. Se eu atacasse você de forma inesperada... - Gina novamente esticou a mão com a caneta e Tonks no mesmo instante levantou a mão para proteger a garganta. Como vê, a defesa é automática.
- Isso é interessante. - comentou Tonks, fazendo força para manter o rosto impassível. - Temos os detalhes dos assassinatos em si, mas não dos motivos por trás deles, nem do assassino. O que há em comum que sirva de ligação entre a promotora Brown e Yvonne Metcalf?
- Estamos seguindo várias linhas de investigação.
- A promotora Brown foi assassinada há três semanas, tenente, e ainda não há nem um suspeito sequer?
- Ainda não temos provas suficientes para efetuar uma prisão no momento.
- Então existem suspeitos?
- As investigações estão prosseguindo com a maior rapidez possível.
- E quanto aos motivos?
- As pessoas se matam umas às outras, Tonks, por uma infinidade de motivos. Isso vem acontecendo desde que viemos do barro.
- Falando em termos bíblicos, - completou Tonks - assassinato é o crime mais antigo que existe.
- Podemos dizer que tem uma longa tradição. Podemos filtrar certas tendências indesejáveis por meio de pesquisas genéticas e tratamentos químicos; temos mapeamentos cerebrais e isolamos indivíduos em colônias penais tirando-lhes a liberdade. A natureza humana, no entanto, permanece a mesma.
- São os motivos básicos para a violência que a sociedade não consegue filtrar: amor, ódio, ganância, inveja, raiva.
- São eles que nos diferenciam dos andróides, não é mesmo?
- E nos tornam suscetíveis a alegrias, pesares e paixões. Este seria um debate para os cientistas e intelectuais. Qual desses motivos, no entanto, matou Lilá Brown e Yvonne Metcalf?
- Sabemos apenas que uma pessoa as matou, Tonks. O propósito dele, ou dela, permanece oculto.
- A polícia já traçou um perfil psicológico do assassino, é claro.
- Traçamos. - confirmou Gina. - E vamos usá-lo, bem como todas as ferramentas que estiverem ao nosso alcance, para encontrarmos o criminoso. Eu vou achá-lo. - disse Gina, deliberadamente virando os olhos para a câmera. - E depois que a porta da cela estiver trancada atrás dele, os motivos não vão mais importar. Apenas a justiça.
- Isso soa como uma promessa, tenente. Uma promessa pessoal.
- E é uma promessa.
- O povo de Nova York está confiante no cumprimento dessa promessa. Eu sou Nymphadora, para o Canal 75. - Esperou um segundo e depois concordou com a cabeça. - Nada mal, Weasley. Vamos reapresentar esta matéria na edição das seis da tarde, depois às onze da noite e teremos um resumo no noticiário de meia-noite.
- Ótimo. - respondeu Gina. - Vá dar uma volta, Pete. - O operador da câmera encolheu os ombros e saiu da sala. - Extra-oficialmente, só entre nós duas. - continuou Gina. - Quanto tempo no ar você pode me dar, Nadine?
- Tempo no ar para quê?
- Para exposição pessoal. Quero muito espaço na TV.
- Sabia que havia alguma coisa por trás desse presentinho que você me deu. -
Tonks expirou rapidamente, quase como se fosse um suspiro.
- Devo dizer que estou desapontada com você, Weasley. Não achei que gostasse tanto de aparecer.
- Vou servir de testemunha no caso Mondell daqui a duas horas. Você consegue levar uma câmera para lá?
- Claro. O caso Mondell não dá muito ibope, mas até que vale uns flashes. - Ela pegou a agenda e anotou o horário.
- E vou também participar de uma festa hoje à noite, no Novo Astória. É um daqueles jantares beneficentes.
- O grande baile do Astória, eu sei. - O sorriso de Tonks se tornou sarcástico. - Não trabalho na área de eventos sociais, Weasley, mas posso dar a dica para a central de reportagens. Você e Harry sempre são um prato cheio para os fofoqueiros de plantão. Você vai com o Harry, não vai?
- Vou avisar a você onde me encontrar pelos próximos dias. - continuou Gina, ignorando o insulto. - Vou lhe passar todas as atualizações sobre o caso, para colocar no ar.
- Ótimo! - Tonks se levantou. - Talvez você acabe tropeçando no assassino quando estiver subindo a escadaria da fama e da fortuna. Já arrumou algum agente, Gina?
Por um momento Gina não disse nada e ficou batendo na mesa com as pontas dos dedos unidas.
- Tonks, eu achava que a sua função era a de jogar notícias no ar e preservar o direito que o público tem de saber, e não a de dar lições de moral.
- E eu achava que a sua função era a de servir e proteger, e não a de se promover com isso. - Tonks pegou a bolsa pela alça. - A gente se encontra na telinha, tenente.
- Tonks. - Satisfeita, Gina se recostou na cadeira. - Você se esqueceu de um daqueles motivos básicos para a violência. Fama.
- Vou anotar. - Gina alcançou a maçaneta, mas deixou a mão escorregar sobre ela. Quando se virou para trás, seu rosto estava pálido de choque por baixo da leve camada de maquiagem. - Você ficou maluca? Virou isca? Você vai bancar a isca?
- Deixei você revoltada, não foi? - Sorrindo, Gina se permitiu o luxo de colocar os pés sobre a mesa. A reação de Tonks a colocou vários pontos acima na escala de valores de Gina. - Achar que eu estava querendo todo esse espaço na mídia só para aparecer, e ver que eu estava conseguindo, deixou você fula da vida. E vai deixá-lo furioso também. Você não consegue ouvi-lo, Tonks? “Olha só aquela tenente bundona roubando todo o meu espaço da mídia para si mesma!”
Tonks voltou e se sentou novamente, devagar.
- Nessa você me pegou, Gina. Não estou querendo ensinar a você como realizar o seu trabalho, mas...
- Então não me ensine.
- Deixe-me só ver se eu estou entendendo a história direito. Você está deduzindo que o motivo, pelo menos um deles, foi a emoção, a necessidade de aparecer na mídia. Mate uns dois cidadãos comuns e você consegue algum espaço na imprensa, claro, mas não tão grande, não tão intenso e completo.
- Mate duas pessoas importantes – completou Gina - com rostos conhecidos e o céu é o limite.
- E então você resolveu se transformar em alvo.
- É só um palpite. - Pensativa, Gina coçou o joelho, sem notar. - Pode ser que tudo o que eu consiga seja algumas imagens idiotas da minha cara na TV
- Ou uma faca na garganta.
- Puxa Tonks, assim eu vou começar a achar que você se importa comigo!
- Acho que me importo. - Ela levou um instante analisando o rosto de Gina. - Trabalho com policiais, em volta deles e em contato com eles, e isto já faz bastante tempo. Você acaba desenvolvendo um instinto para saber quem é que está só contando tempo para a aposentadoria e quem é que realmente se interessa pelos outros. E sabe o que me preocupa, Weasley? Você se interessa demais pelos outros.
- Eu carrego um distintivo. - replicou Gina com sobriedade e isto fez Tonks rir.
- Pelo jeito você também anda vendo muitos daqueles vídeos antigos. Enfim, o pescoço é seu, literalmente. Vou fazer de tudo para mantê-lo exposto.
- Obrigada. Tem mais uma coisa. - acrescentou Gina quando Tonks se levantou novamente. - Se esta teoria tem algum peso, então os futuros alvos vão continuar sendo mulheres famosas e bem-sucedidas. Cuide do seu pescoço também, Tonks.
- Meu Deus! - Estremecendo, Tonks passou os dedos sobre a garganta. - Obrigada pelo aviso, Weasley.
- O prazer foi todo meu, literalmente. - Gina ainda teve tempo de dar uma risada depois que a porta se fechou, e logo depois veio a chamada convocando-a para a sala do comandante.
Obviamente ele já soubera da reportagem.
Ela ainda estava um pouco insegura quando subiu, como um raio, as escadas do tribunal. As câmeras estavam lá como Tonks prometera. Estavam presentes à noite também no Novo Astória, no momento em que ela colocou o pé fora da limusine de Harry e fingiu que estava se divertindo.
Depois de dois dias dando de cara com alguma câmera a cada vez que dava três passos, Gina se sentiu surpresa por não encontrar uma no quarto dando um zoam acima de sua cama, e comentou isto com Harry.
- Foi você que pediu por isso, querida.
Ela estava sentada por cima dele, usando o que sobrara do conjunto de três peças que usara na mansão do governador. A roupa preta e dourada cintilava ao roçar suas costelas e já estava desabotoada até o umbigo.
- Só que eu não tenho de gostar. Como é que você agüenta, Harry? Você convive com isso o tempo todo! Não é horripilante?
- Você aprende a ignorar - ele abriu mais um botão da blusa - e vai em frente. Gostei do jeito que você estava esta noite. - De modo distraído, ele brincou com o diamante que ela trazia pendurado entre os seios. - É claro que estou gostando muito mais do jeito que está agora.
- Eu jamais vou conseguir me acostumar com isso. Toda essa trabalheira, ficar de papo-furado nas festas, usar o cabelão todo armado. E ainda por cima as roupas não ficam bem em mim.
- Elas podem não ficar bem na tenente, mas ficam bem na Gina. Você pode ser as duas. - Ele observou as pupilas dela se dilatarem quando espalmou as mãos sobre seus seios, envolvendo-os em concha. - Você gostou da comida.
- Bem, claro, mas... - ela estremeceu e soltou um gemido quando ele esfregou os mamilos dela com os polegares. - Acho que eu estava tentando provar uma teoria. Jamais devo conversar com você na cama.
- Excelente dedução. - Ele elevou o corpo e substituiu os polegares pelos dentes.
Ela estava dormindo profundamente, um sono sem sonhos, quando ele foi acordá-la. A policial despertou antes, alerta e preparada.
- O quê? - Apesar de estar nua, ela buscou a arma ao seu lado. - O que foi?
- Desculpe! - Quando Harry se inclinou sobre a cama para beijá-la, ela sentiu que ele estava rindo pelas vibrações do seu corpo.
- Não tem graça! Se eu estivesse armada você já estaria no chão.
- Sorte minha.
Com um gesto distraído, ela empurrou Galahad, que decidira se sentar sobre a sua cabeça.
- Por que você está vestido? O que está havendo?
- Acabei de receber uma ligação. Estão precisando de mim na Estação FreeStar One.
- O Olympus Resort. Luzes, diminuam. - ordenou ela, e piscou para conseguir focar o rosto dele, que se destacara contra o fundo esmaecido. Meu Deus, pensou ela, ele parecia um anjo. Um anjo caído. Um anjo perigoso. - Há algum problema na estação?
- Pelo jeito, sim. Mas nada que não possa ser solucionado. - Harry pegou Galahad no colo, fez-lhe um pouco de carinho e a seguir o soltou no chão. - Só que eu tenho de lidar com o problema pessoalmente. Pode ser que leve uns dois dias.
- Oh... - Era por estar meio tonta, disse a si mesma, que ela sentiu aquela horrível sensação de vazio. - Bem, então nos vemos quando você voltar.
- Você vai sentir saudades? - Ele passou um dedo sobre a covinha do queixo dela.
- Talvez. Um pouco. - Foi o sorriso rápido dele que a derrotou. - Sim.
- Tome, vista isto. - Ele jogou um robe na direção das mãos dela. - Há uma coisa que eu quero lhe mostrar antes de sair.
- Você já está indo?
- O carro já está me esperando. Que espere.
- Acho que, agora, eu deveria descer com você e lhe dar um beijo de despedida. - murmurou ela enquanto vestia o robe às pressas.
- Isso seria legal, mas primeiro as coisas mais importantes. - Ele pegou na mão dela e a puxou para dentro do elevador. - Não há necessidade alguma de você se sentir pouco à vontade nesta casa, enquanto eu estou longe.
- Certo.
Ele colocou as mãos nos ombros dela no momento em que a cabine começou a descer.
- Gina, esta é a sua casa agora.
- De qualquer modo, vou estar muito ocupada. - Ela sentiu a mudança suave quando a cabine começou a se deslocar na horizontal. - Nós não vamos direto até lá embaixo?
- Ainda não. - e colocou o braço em volta dos ombros dela quando as portas se abriram.
Era uma sala que ela ainda não conhecia. Também, avaliou, havia provavelmente dezenas de salas pelas quais ela nunca passara nos labirintos da casa. Mas bastou apenas uma rápida olhada para ela reconhecer que aquele ambiente era dela.
As poucas coisas em seu apartamento que ela considerava de valor estavam ali, com algumas peças que haviam sido acrescentadas para preencher todos os espaços, transformando o aposento em um agradável local de trabalho. Afastando-se de Harry, ela ficou vagando por ali.
O piso era em madeira bem lisa, e havia um tapete tecido em tons de azul-acinzentado e verde-musgo, provavelmente vindo de uma das fábricas de Harry no Oriente. A mesa de trabalho de Gina, surrada devido ao uso, estava sobre o tapete de valor inestimável, e em cima dela todo o seu equipamento estava instalado.
Uma parede de vidro jateado separava a sala de uma pequena cozinha, totalmente equipada, que dava para um pequeno terraço. Havia mais, é claro. Com Harry, sempre havia mais. Um painel interligado permitia que ela se comunicasse com qualquer cômodo da casa. A central de entretenimento oferecia música, vídeo, uma tela holográfica com dezenas de opções de visualização. Um pequeno jardim interno estava florindo com todo o vigor debaixo de uma janela em arco por onde se via o dia que estava nascendo.
- Você pode mudar o que não estiver do seu agrado. - disse ele enquanto passava a mão sobre a parte de trás de uma espreguiçadeira. - Tudo aqui foi programado para atender ao seu comando de voz e às impressões de sua mão.
- Muito eficiente. - disse ela, e limpou a garganta. - Muito legal.
Surpreso consigo mesmo por notar que estava um feixe de nervos, Harry enfiou as mãos nos bolsos.
- O seu trabalho exige um espaço próprio. Eu compreendo isso. Você quer seu próprio espaço e privacidade. O meu escritório fica aqui do lado, atrás do painel oeste. Mas a porta tem trinco pelos dois lados.
- Entendo.
Agora ele sentia um pouco de raiva cobrindo a sensação de nervoso.
- Se você não conseguir se sentir à vontade na casa durante a minha ausência, pode se entrincheirar aqui neste apartamento. Pode até mesmo se entrincheirar aqui, mesmo que eu esteja em casa. Só depende de você.
- Sim, eu sei. - Ela respirou fundo e se virou para ele. - Você fez isso por mim.
Com ar aborrecido, ele inclinou a cabeça.
- Acho que não existe muita coisa que eu não fizesse por você.
- E eu acho que só agora essa noção está começando a calar fundo dentro de mim. - Ninguém, ela compreendia, jamais lhe oferecera algo tão perfeito. - Isso me transforma em uma mulher de sorte, não é?
Ele abriu a boca, mas desistiu de falar algo que ia ser particularmente desagradável.
- Ao diabo com isso. - decidiu ele. - Tenho de ir.
- Harry, só mais uma coisa. - Ela foi até ele sabendo perfeitamente que ele só faltava ranger os dentes de raiva. - Eu ainda não dei um beijo de despedida em você. - murmurou, e o beijou de forma tão arrebatadora que o fez balançar-se para trás sobre os calcanhares. - Obrigada... - E antes que ele conseguisse falar, beijou-o mais uma vez. - Por sempre saber o que é importante para mim.
- De nada. - e, de forma possessiva, ele passou a mão sobre os cabelos desarrumados dela. - Sinta saudades de mim.
- Já estou sentindo.
- E não se arrisque sem necessidade. - As mãos dele agarraram os cabelos dela com um pouco mais de força por alguns instantes. - Sei que não adianta pedir para que você não corra os riscos necessários.
- Então não peça. - O coração dela trepidou quando ele beijou sua mão. - Faça uma boa viagem. - disse-lhe quando ele entrou no elevador. Ela era novata nesses assuntos. Então, esperou até que as portas estivessem quase fechadas e acrescentou: - Eu amo você.
A última imagem que ela viu foi o brilho do sorriso dele.
- O que conseguiu, Neville?
- Talvez alguma coisa, talvez nada.
Era cedo, oito horas da manhã, logo após Harry ter viajado para a Estação FreeStar One, mas Neville já estava com aparência cansada. Gina programou dois cafés extrafortes no AutoChef.
- Você aqui, a esta hora, com cara de quem passou a noite acordado, e de terno, eu só posso deduzir que descobriu alguma coisa. E eu sou uma detetive cinco estrelas.
- Sim. Andei explorando algumas coisas no computador, indo mais fundo na pesquisa sobre as relações pessoais e familiares das vítimas, como você pediu.
- E?...
Esquivando-se do assunto, Neville bebeu o café, pescou uma amêndoa com cobertura doce no fundo do saco de papel e coçou a orelha.
- Vi você no noticiário ontem à noite. Foi minha mulher que viu, na verdade. Disse que você estava toduflash. Essa é uma daquelas gírias das minhas crianças. A gente tenta acompanhar o jeito de falar delas.
- Nesse caso, você está me empedrando, Neville. Essa é uma das gírias das crianças também. A tradução é: você não está sendo claro.
- Eu sei o que quer dizer. Merda! É que essa aqui vai pegar muito perto da gente, Weasley. Muito perto.
- E é por isso que você veio até aqui para me trazer a notícia, em vez de transmitir o que descobriu por um dos canais normais. Então vamos lá.
- Certo. - Ele suspirou. - Eu estava xeretando os arquivos de David Angelini. Basicamente os dados financeiros. Já sabíamos que ele andava enrascado com uns caras duros de encarar, por causa de dívidas de jogo. Ele estava conseguindo segurar os sujeitos dando uma migalha aqui e ali. Pode ser até que ele tenha andado metendo a mão na gaveta da empresa, mas não consegui acessar essas informações. Ele se cobriu muito bem.
- Então vamos descobri-lo. Eu posso conseguir os nomes dos capangas que o estão pressionando. - analisou ela, pensando em Harry. - Podemos descobrir se ele fez alguma promessa, tipo assim: “Estou para ganhar uma herança.” - Suas sobrancelhas se uniram. - Se não fosse por Yvonne Metcalf, eu ia começar a trabalhar a idéia de que alguém a quem David deve dinheiro resolveu adiantar a herança dele eliminando Lilá Brown.
- Pode ser que seja simples assim, mesmo com Yvonne Metcalf. Ela tinha um bom pé-de-meia de reserva. Não encontrei ninguém entre os beneficiários, que estivesse precisando de dinheiro rápido, mas isto não quer dizer que eu não vá encontrar.
- Certo, continue nessa pista. Só que esse não é o motivo de você estar aqui, brincando com as suas amêndoas.
Ele quase conseguiu sorrir.
- Muito engraçada. Tudo bem, lá vai. Eu descobri coisas sobre a mulher do comandante.
- Vá com calma, Neville. Conte-me tudo bem devagar.
Neville não conseguia ficar sentado, então se levantou e começou a andar de um lado para outro dentro da pequena sala.
- David Angelini fez alguns depósitos grandes em sua conta bancária pessoal. Quatro depósitos de cinqüenta mil dólares nos últimos quatro meses. O último deles caiu na conta duas semanas antes de a mãe ser executada.
- Tudo bem, ele faturou duzentos mil dólares em quatro meses e colocou no banco, como um menino responsável. E onde ele conseguiu essa grana?... Cacete! - Gina, de repente, soube.
- Isso mesmo. Eu acessei as transações eletrônicas. Rastreei toda a movimentação. Ela transferiu o dinheiro para a conta pessoal dele aqui em Nova York, e ele jogou o dinheiro na sua conta em um banco de Milão. Depois ele retirou tudo, em dinheiro, em um caixa eletrônico no Cassino Espacial Las Vegas II.
- Jesus, por que ela não me contou isso? - Gina apertou as têmporas com os punhos fechados. - Por que diabo de motivo ela nos fez procurar por isso?
- Não é o caso de ela ter tentado esconder. - disse Neville depressa. - Quando eu acessei os registros, apareceu tudo logo de cara. Ela tem uma conta só dela, como o comandante. - e limpou a garganta quando viu o olhar de Gina. - Eu tinha de verificar tudo, Weasley. Ele não tem feito nenhuma transação fora do normal na conta dele, nem na conta conjunta. Mas ela deixou o saldo dela pela metade, ao fazer essa pequena caridade para David Angelini. Puxa, Weasley, acho que ele estava arrancando essa grana dela.
- Chantagem. - especulou Gina, lutando para pensar naquilo com a cabeça fria. - Talvez eles tivessem um caso. Talvez ela estivesse presa ao canalha.
- Puxa vida, ai, meu Deus. - o estômago de Neville se contorceu dolorosamente. - O comandante.
- Eu sei. Temos de levar esta informação a ele.
- Eu sabia que você ia dizer isso. - Pesaroso, Neville tirou um disco do bolso. - Está tudo aqui. Como é que você quer fazer?
- O que eu queria mesmo é ir até a casa deles em White Plains e sacudir o traseiro da senhora Lupin para fora da vidinha perfeita que ela leva. Como não dá para fazer assim, vamos até o comandante e abrimos o jogo com ele.
- Lá no depósito ainda tem alguns daqueles antigos coletes à prova de balas. - sugeriu Neville quando Gina se levantou.
- Boa idéia.
Eles bem que poderiam ter usado os coletes. Lupin não subiu na mesa, não os agrediu, nem sacou sua arma de atordoar. Fez todos os danos necessários fuzilando-os com um olhar letal.
- Você acessou as contas pessoais da minha mulher, Neville.
- Sim, senhor, acessei.
- E levou todas as informações à tenente Weasley.
- Como rezam os procedimentos, senhor.
- Como rezam os procedimentos. - repetiu Lupin. - Agora está trazendo os fatos para mim.
- Para o oficial comandante. - começou Neville, e então deixou os olhos baixarem. - Ah, que inferno, Remus! Então eu deveria enterrar tudo?
- Você poderia ter vindo falar comigo antes. Mas também... - Lupin parou de falar e desviou o olhar duro para Gina. - Você confirma tudo isso, tenente?
- A senhora Lupin pagou a David Angelini a soma de duzentos mil dólares em um período de quatro meses. Este fato não foi relatado espontaneamente por ela durante o interrogatório inicial nem nos que se seguiram. É necessário para que a investigação prossiga, que... - Ela parou de falar. - Temos de saber o porquê disso, comandante. - Um olhar que parecia pedir desculpas estava no rosto de Gina, querendo aparecer por trás da estampa da policial. - Temos de saber por que esse dinheiro foi pago, porque não houve nenhum outro pagamento depois da morte de Lilá Brown. E eu tenho de perguntar, comandante, como investigadora principal do caso, se o senhor tinha conhecimento dessas transações e das razões por trás delas.
Lupin sentiu um aperto no estômago e uma queimação que era sinal de estresse não tratado.
- Vou lhe responder isso depois de conversar com minha mulher.
- Senhor. - a voz de Gina era um apelo calmo. - O senhor sabe que não podemos permitir que o senhor consulte a senhora Lupin antes de a interrogarmos. Esta nossa reunião já trouxe o risco de contaminar a investigação. Desculpe, comandante.
- Você não vai trazer a minha mulher aqui para interrogatório.
- Remus...
- Dane-se, Neville, ela não vai ser arrastada até aqui como uma criminosa! - Ele apertou as mãos, formando uma bola com os punhos, e lutou para manter o controle. - Interroguem-na em casa, na presença de nossa advogada. Isso não viola nenhuma regra dos procedimentos, certo, tenente Weasley?
- Não, senhor, não viola. Com todo respeito, comandante, o senhor gostaria de vir conosco?
- Com todo respeito, tenente. - respondeu ele, com um ar amargo. - Nada no mundo me impediria.
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